quinta-feira, 22 de maio de 2008

Peixe Grande




Peixe Grande

(Big Fish – EUA – 2003)
Gênero: Comédia/Drama
Tempo de Duração: 125 minutos
Estúdio: Columbia Pictures Corporation / The Zanuck Company / Jinks/Cohen Company
Distribuição: Columbia Pictures / Sony Pictures Entertainment
Direção: Tim Burton
Roteiro: John August, baseado em livro de Daniel Wallace
Produção: Bruce Cohen e Dan Jinks
Música: Danny Elfman
Fotografia: Philippe Rousselot
Direção de Arte: Roy Barnes, Robert Fechtman, Jack Johnston e Richard L. Johnston
Efeitos Especiais: Sony Pictures Imageworks / Stan Winston Studio / The Moving Picture Company
ElencoAlbert Finney (Ed Bloom)
Ewan McGregor (Ed Bloom – jovem)
Billy Crudup (Will Bloom, o filho de Ed Blomm)
Jessica Lange (Sandra Bloom)Alison Lohman (Sandra Bloom – jovem)
Helena Bonham Carter (Jenny – a bruxa)
Robert Guillaume (Dr. Bennett)
Marion Cotillard (Josephine)
Matthew McGrory (Karl – o gigante)
David Denman (Don Price - 18 aos 22 anos)
Missi Pyle (Mildred)
Loudon Wainwright III (Beamen)
Ada Tai (Ping)Arlene Tai (Jing)
Steve Buscemi (Norther Winslow – o poeta)
Danny DeVito (Amos Calloway – Dono do circo)
Deep Roy (Sr. Soggybottom)
Perry Walston (Ed Bloom - 10 anos)
Hailey Anne Nelson (Jenny - 8 anos)

Grayson Stone (Will Bloom - 6 aos 8 anos)


Se você fosse explicar a uma criança a virtude da humildade, como faria isso? Imagino que contaria a ela uma história, não? E a um adulto? Explicaria conceitos, daria definições diversas ou apresentaria uma tese? Que tal usar o conto “A raposa e o gato” dos irmãos Grimm?

Era uma vez um gato que passeava pelo bosque onde nascera. Encontrou uma raposa e foi logo falando:
- Bom dia, Dona Raposa!
A Dona raposa, muito orgulhosa e de focinho empinado, olhou para o gato dos pés à cabeça e disse:
- Oh, insignificante caçador de ratos, como se atreve a dirigir-me a palavra? Como alguém como eu, com tantas habilidades, poderia ouvir a voz de um gato que mal sabe se virar? Mas afinal, quais são suas habilidades?
- Apenas uma, respondeu o gato humildemente. Quando os cachorros correm atrás de mim, subo nas árvores e me salvo.
- Só isso, perguntou a raposa surpresa. Eu sou especialista em dezenas de habilidades, além de ser muito esperta.
Naquele mesmo momento chegava um caçador com seus cães de caça. O gato subiu em uma árvore, indo para o galho mais alto. Estando lá em cima, gritou para a Dona raposa:
- E agora Dona raposa, não vai usar as suas habilidades?
Mas os cachorros acabaram com ela.
- Pobre raposa! Exclamou o gato. Você com suas muitas habilidades e esperteza e foi caçada. Eu, com uma só habilidade, salvei-me.

Aposto que você deve estar pensando que uma historinha dessas só serve para entreter crianças. Engano seu. Os irmãos Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhem Karl Grimm eram docentes da Universidade de Gottingen, Alemanha, e criaram seus contos a partir das lendas populares de seu país. Ingressaram na Academia de Ciências de Berlim e elaboraram uma coleção de contos conhecidos no mundo todo.

O grande problema com o nosso mundo ocidental e, herdeiro do racionalismo cartesiano, é a dificuldade de compreender o que é a verdade. Confundimos verdade com o método empírico, isto é, se puder ser provado, é verdade, senão...

Meus alunos de teologia ficam muito zangados comigo quando tento mostrar para eles que o mundo antigo apresentado na Bíblia usava muito o discurso narrativo para contar e dar sentido aos eventos do passado. Eram muito utilizados gêneros como contos, novelas, lendas, sagas etc. Até uma “dramaturgia” encontramos no livro de Jó! Muitos desses alunos acham que a verdade só pode ser verdade se puder ser provada, se o que aconteceu, “aconteceu de fato”.

Muitas vezes, quando explico a formação do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), vários alunos levantam-se em defesa do fato pelo fato. Não admitem que aquele povo possa ter utilizado a mesma história muitas vezes e dado vários sentidos a ela de acordo com a época em que viveram. O mais irônico disso tudo é que esses mesmos alunos reinterpretam os textos sagrados conforme suas crises e experiências, apontando novos sentidos, e nem se dão conta disso. Fazem o que os homens do passado fizeram, mas não admitem que isso possa ter acontecido; não suportam que o fato possa ter se misturado à narração, e a narração à ficção. Pena que não sejam apenas alunos que pensem assim, raposas velhas também.

Acredito que sabendo dessa dificuldade que nós adultos temos com a verdade empacotada em histórias de pessoas é que Tim Burton fez o filme Peixe Grande. Aliás, para Burton não é nova essa experiência de contar histórias: colocou na telona Edward Mãos de Tesoura, outra bela narrativa fabular para criticar a sociedade purista norte-americana.

Peixe Grande é um caso comum de fracasso de bilheteria, mas unanimidade quando indicado na propaganda do boca-a-boca.

Ed Bloom (Albert Finney/Ewan McGregor) é o protagonista das aventuras. Na velhice descobre que está doente e, visitado pelo filho, percebe que não resta outros ouvidos para escutar suas histórias a não ser o de sua nora, para quem narra seu passado mesclado com fantasia. Tendo saído jovem de sua pequena cidade-natal, no Alabama, para realizar uma volta ao mundo, narra sua vida desde o nascimento.

O filme gira em torno da oposição do filho contra o pai. O filho representando o mundo empírico e racional; o pai representando o mundo fantástico e imaginário. Essa tensão encontra um belo final que envolve o expectador, que também como o filho, Will Blomm, sai do cinema disposto a ouvir mais suas próprias histórias. É que fazendo isso descobrimos o quanto é terapêutico narrar; recontar é um processo de mudar o passado pelas experiências do presente.

Mas por que Peixe Grande? Que nome estranho para um filme. Porém, logo no início surge o grande protagonista que começa a história e também a termina: um peixe; metáfora do próprio Ed Blomm: “Alguns peixes não podem ser fisgados. Eles têm aquele toque especial”.

Aliás, a história terminar como começou, isto é, com Ed Blomm na forma de um peixe, não é de graça. Obviamente temos aqui a velha fórmula do eterno retorno que tanto marcou o modo de narrar dos povos primitivos, dos nossos antepassados. Não tendo acesso a um modo “científico” de narrar a vida, narravam pelo mito. Ora, e não é que a palavra grega “mythos” significa exatamente isso: narrar? Logo, não é de se assustar que Blomm prefira as fantasias em vez das racionalizações.

A idéia de eterno retorno, de fim que repete o começo, nos leva imediatamente à idéia de redobramento, que é outro modo de expressão do nosso imaginário. Na literatura é farta a imagem do duplo, do alterego, do outro-eu, que por vezes se confunde com a imagem do labirinto e do espelho. No filme, o Blomm da realidade, o Blomm doente e com um filho descrente, tem um oposto e semelhante no mundo da fantasia, do sonho. Mundo este que se liga ao espaço da profundidade, do inconsciente e do eu onírico. Por isso, não por acaso a psicologia profunda de Jung e a filosofia de Bachelard vêem nas águas profundas e no peixe, símbolos do inconsciente. Não será por essa a razão que a palavra “blomm” nos leva a pensar numa onomatopéia do mergulho?

A repetição de uma história que recomeça pelo final, ou o redobramento de uma personagem, são formas de narrar que pretendem enfrentar a condição de mortalidade. Algo que se repete nunca acaba, nunca morre. Isso se faz pela dramatização do tempo ou com a invenção de um outro tempo e de um outro mundo – daí a utopia. Blomm, ao inventar um mundo novo e maravilhoso, negou o poder da morte e eternizou-se em suas histórias. A narração no final do filme não mente: “Um homem conta suas histórias tantas vezes que ele se mistura a elas e elas sobrevivem a ele, e é desse jeito que ele se torna imortal”.


A narrativa e as imagens apresentam suas intenções para com a figura do peixe. Primeiro o peixe é comparado com a família de Blomm, pois o peixe que ele pesca está “cheio de ovas”, o que expressa o seu carinho e afeto profundo pela família.

Também o peixe representa a sua esposa: “O único jeito de fisgar uma mulher inalcançável é dar-lhe uma aliança de ouro”, diz ele. Nas imagens iniciais, Blomm fisga o peixe com a sua aliança de casamento, e isso faz com que ele ligue a dificuldade de fisgar um peixe imaginário com a dificuldade que foi conseguir casar-se com Sandra Blomm, história que ele narra logo em seguida. Aliás, muito parecida com a narrativa de Jacó no Antigo Testamento, pois Blomm serve seu patrão por vários anos até poder conhecer sua futura mulher. Moral da história: só o difícil é estimulante, dizia o poeta José Lezama Lima.

Outra conotação do peixe no filme vemos no próprio Blomm, que conta que passou a crescer mais do que os outros rapazes e achou a solução numa enciclopédia que afirmava que um peixe dourado poderia crescer mais se estivesse fora do aquário, em um lugar maior. Ele concluiu então que a melhor maneira de se adaptar seria saindo da cidade que estava ficando pequena demais para ele, como um aquário. Blomm percebeu que tinha de sair do seu mundinho para crescer, amadurecer, tornar-se alguém maior do que aquilo que era. A sua fala ao gigante é reveladora: “Já parou para pensar que não é você que é grande demais mas essa cidade é que é pequena demais? Para um homem grande é preciso uma cidade grande. Se você acha que uma cidade como essa é pequena demais para você, imagina para o tamanho da minha ambição”. Blomm é um peixe grande demais para ficar preso a um só lugar, à falta de criatividade e, principalmente, aos fatos pelos fatos. Não se é grande por causa do tamanho (Blomm vence o gigante como Davi venceu Golias), mas por causa da ambição.

Na seqüência Tim Burton mostra passo a passo a trajetória de Bloom para alcançar o seu objetivo de ser grande, e como esse objetivo é assaltado logo de cara com a tentação da felicidade eterna, do paraíso, da utopia e, com essas coisas, a possibilidade da preguiça, da falta de motivação e do fim da caminhada. Na cidade da tranqüilidade (Spectre) o fim da caminhada é simbolizado pelos sapatos que devem ser tirados e pendurados, para jamais serem novamente calçados. Mas “pendurar as chuteiras” não é o melhor negócio para quem quer ser grande, para quem quer continuar em frente, caminhando. Nem sempre o “céu” é o limite.

Algumas curiosidades apontam que essa cidade seria a figura do céu, do paraíso: um homem de branco o recebe já sabendo o seu nome; tudo na cidade é perfeito; todos são felizes e não há nada para fazer; no fim da vida Blomm vai para lá. Isso significa que Ed se deparou muito cedo com essa cidade, ainda não era a hora.

Mais próximo do final, quando Blomm já é um “peixe” de bom tamanho, capaz negociante, decide comprar a cidade pela qual passara, agora em decadência “por causa da especulação financeira”. Ele compra a cidade só pelo prazer de preservá-la e, claro, guardar um pedacinho daquele céu. Ele mesmo diz duas vezes: “O destino tem um jeito de enredar as pessoas e pegá-las de surpresa”. A única que sabia disso era a “bruxa” (a menina da cidade “celeste” e ela são as mesmas), aquela que funcionou como o oráculo que desvendou que o seu destino estava aberto, que “não era assim que ele deveria morrer”.

Alguns não sabem o que fazer com a liberdade. É isso o que acontece com o poeta da cidade perfeita. Tendo os olhos abertos por Ed, o poeta foge de seu destino tedioso de um mundo perfeito demais. Porém, exagera na dose e decide roubar um banco. Irônico mas verdadeiro. Isso me fez lembrar de outro filme, O Demolidor (Demolition Man), em que Sylvester Stallone, vindo do passado mas entediado e preso numa cidade do futuro, afirma que nada adianta uma cidade onde tudo é perfeito mas que não se pode falar palavrões, peidar e nem se entupir de hambúrgueres. Como disse certa vez Rubem Alves: se no céu tudo for perfeito, deve ser uma chatice jogar sinuca, ninguém perde!

No fim do filme Blomm tem o seu batismo, o retorno para a água e o recomeço de tudo. Entretanto, agora quem conta o fim da história não é ele e sim o filho. Repare como a voz narrativa no início do filme é feita pelo filho de Blomm que diz: “Os fatos não podem vir separados da ficção e nem o homem do mito. O melhor jeito é contar exatamente como aconteceu”.

O filme conta exatamente como aconteceu, assim como contamos nossas histórias e memórias exatamente como aconteceram, sem separações da ficção nem dos mitos. Ou alguém acha que conta a sua história sem afetos e sentidos, sem mitos e ficções que nos enraízam na vida? Num mundo do hiper-realismo materialista e capitalista, do positivismo lógico diante de um cotidiano multívoco, Tim Burton retoma a fantasia, o infante que pode estar escondido atrás do adulto já sisudo, que se leva muito a sério. Afinal, não é você que vai ficar, são suas histórias.

É fácil cair na tentação de Will Bloom, de contar somente os fatos, sem nenhum sabor. Os fatos carregam as marcas do tempo e da morte, enquanto as histórias carregam as marcas da memória e da eternidade. Bloom, como ele mesmo afirma, ficou sedento a vida toda, como um peixe fora d’água, como um imaginador num mundo de fatos. Tinha sede por encontrar a alma da vida confrontando um ambiente cético e regido pela razão estéril.

Semelhante ao “Fisher King” (Rei Pescador) da lenda e das narrativas que construíram o mito do Santo Graal, Blomm é um homem com uma ferida que não sara até que encontre o fim de sua história, que na verdade é o recomeço, o contar de novo. Contar mil histórias e terminar é semelhante a morrer, começar tudo de novo pela mil e uma é se eternizar. Portanto, antes de se decepcionar com a velha história do pescador: ouça. Assim encontramos a felicidade, pois ela não está na chegada mas na caminhada.

09/2004

2 comentários:

Moderador disse...

Assisti o filme hoje. Muito bom. Uma ótima historia.

Unknown disse...

Muito bom esse filme, tá no meu top 3, junto com 21 gramas e O Mundo de Andy. Edward Bloom me faz lembrar o personagem Chicó de O Auto da Compadecida.