quarta-feira, 22 de julho de 2009

Harry Potter e o espelho


O universo de Harry Potter não é exatamente uma novidade. Quer dizer, para muitos leitores e telespectadores, talvez seja. E quando falo o universo de Harry Potter, leiamos o universo de J. K. Rowling, é claro. Universo que não se trata exatamente de uma invenção original, senão de uma reinvenção. Antes dela, encontramos na Europa C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Edith Nesbit, entre outros. Isso só para indicar os autores que trabalharam um tipo de literatura fantástica de porte semelhante, pois, a literatura fantástica em suas diversas seções, é muito maior.

Por outro lado, devemos considerar que o sucesso de Rowling se deve a pelo menos dois motivos. O primeiro é que, apesar da reinvenção, é uma bela reinvenção. Diria mesmo que se trata de um universo muito particular, nascido dos sonhos e da alma de uma autora que decidiu compartilhá-los conosco. O segundo motivo, ligado bem de perto ao primeiro, é que os sonhos de Rowling também são os nossos. Como Rowling, a nossa alma anseia por algo que não sabe exatamente o que. De certa forma, é como se a autora tivesse conseguido plasmar em palavras o que só sabemos por sentimentos. Mais do que palavras, Rowling plasmou imagens e, além de imagens, um universo imaginário que bate bem lá no fundo de nossas almas. Para muitos de nós, Rowling não está contando só a história de Harry Potter, mas a nossa também. Quantos de nós não nos identificamos com vários de seus personagens, sejam bons ou maus? Mesmo que os maus tenhamos varrido para debaixo do nosso tapete particular, reconhecendo que não queremos enfrentar as nossas sombras. E não é que Potter também tem que enfrentar tais sombras e, com isso, nos conduz a pensar o quanto é tolice ser “bonzinho”?

Ah, aquela escola! Não sou britânico e não tenho a mínima idéia do que seja estudar numa escola daquele tipo, naqueles moldes. E aquela arquitetura? Gótica da era vitoriana! A não ser em igrejas, nunca frequentei uma instituição educacional com aquela riqueza de detalhes. Mas é incrível como me identifiquei com aquele lugar. Lembro-me de desenhar “castelos” como aquele na minha adolescência. Como podemos nos sentir tão em casa em espaços que quase nunca experimentamos em nossa vida? Como personagens, animais, lugares e enredos podem ser nossos, tanto quanto de Rowling e, ao mesmo tempo, estranhos? Afinal, pessoas não falam a língua das cobras, não existem grifos, corujas-correios ou varinhas dotadas de poder como aqueles que lemos ou vemos nas histórias de Potter. É um mundo de ficção.

Ouso dizer, porém, que a ficção imita a vida, por mais ficção seja a história. Na vida real não existem ogros ou unicórnios, mas na vida imaginária sim. E até que ponto a vida imaginária é real? Não foi dela que nasceram os sonhos mais extraordinários do ser humano? Nela, voamos sem ainda termos inventado o avião. Nela, pensamos os átomos, sem ainda os termos descoberto. O celular, o computador, o robô, foram todos imaginados. Mais interessante ainda, muitos deles foram imaginados na literatura. A nossa epistemologia, ou seja, o conhecimento científico ou aquilo que conhecemos como “verdade”, nasceu primeiro de nossos sonhos, quando as palavras andavam de mãos dadas com a música, quando o nosso mundo era feito de mitos e não de certezas racionais. Logo, ogros ou unicórnios tem tanto sentido na vida real quanto colocarmos a mão no fogo. Pois é desse mundo imaginário que Lewis, Tolkien, Rowling e nós compartilhamos. É a mesma fonte. Fonte tão antiga quanto o homem. Querem ver como?

Vou eleger alguns elementos do universo potteriano e tentar apontar como muitos desses elementos estão em nossas almas desde antigamente. Para tal, vou me basear na antropologia do imaginário de Gilbert Durand e em algumas noções literárias de Gaston Bachelard. Mas farei isso de modo muito geral, de tal forma que prevaleçam mais as analogias, exemplos e a linguagem fática, em detrimento da linguagem técnica e acadêmica.

O primeiro elemento que escolho, bem ao acaso, é o espelho, que aparece em muitos momentos na narrativa potteriana. Trata-se de um elemento tipicamente nictomórfico, ou seja, um objeto ligado às imagens da noite, com certa aura mística. É isso que observamos, por exemplo, na mitologia do deus mexicano Tezcatlipoca, cujo nome significa “espelho fumegante”, pois é um espelho que foi feito da lava vulcânica, que manifesta o destino do mundo.

A água foi, possivelmente, o primeiro espelho da história. As imagens vindas dos espelhos são semelhantes àquelas vindas das águas: são duplicadas, desdobradas, redobradas. O reflexo é naturalmente um fator de redobramento. É por isso que em muitas obras literárias, do espelho surge o duplo do personagem. Veja, por exemplo, essa técnica nas obras de Guy de Maupassant, grande contista da literatura fantástica francesa. Ou ainda, o redobramento do personagem na tragédia clássica grega ou a inversão da história nos romances policiais. Aliás, no universo de Potter, os papéis se invertem e o assassino sádico e cruel revela-se no insuspeito homem honesto.

A duplicação da imagem na água foi a maldição de Narciso na mitologia grega, pois, em certo sentido, Narciso não consegue ver nada mais além de si mesmo, em seus desejos mais profundos e inconscientes. Ora, e não é Narciso que Harry vive no “Espelho de Ojesed” no primeiro livro, “Harry Potter e a pedra filosofal”?

Nas mitologias, existe uma assimilação lingüística entre a palavra mãe e a palavra água, geralmente ligadas a ideia uma deusa mãe ou uma Grande Deusa. É assim com a Astarte síria, a Athar árabe, a Ishtar babilônica, a Tanit de Cartagena. Todas mães férteis simbolizando a necessidade que os povos antigos tinham da fertilidade da terra. Porém, por vezes eram mães “traiçoeiras”, podendo ser desdobradas nas mulheres fatais. É aqui que encontramos, seguindo essa correspondência, a mulher sedutora pelo seu canto ou pelo seu olhar. Ela canta o mostra o que o homem deseja, como num espelho da própria alma do homem. Sereia, moira ou feiticeira, encanta pelos desejos. A propósito, a feminilidade e a água se encontram ligadas na Marfaye primordial que, etimologicamente, deu em inglês “Mermaid” (sereia).

Na tradição alquímica, a mãe das águas também dá o nome ao “aquaster”, isto é, a base para criar ou encontrar a matéria densa, cruda e grossa. Ela é o princípio da alma vital, que a psicologia chama de inconsciente. Em outros momentos ela é o mercúrio dos alquimistas, representado pelos traços do velho Hermes: união do arquétipo da anima (alma masculina) com o velho sábio (Dumbledore?). Aliás, diga-se de passagem, Rowling disse em uma entrevista que Dumbledore é gay. Talvez ela não saiba, mas Hermes é um ser entre mundos, isto é, até certo ponto é um andrógino, meio homem e meio mulher. E aqui não se trata de uma opção ou escolha sexual, mas de uma característica única (duas naturezas), exigida para o encargo que lhe cabe. Como Hermes, Dumbledore, com poucas palavras, ou quase nenhuma, desvenda os oráculos mais difíceis ou já os conhece antes que todo mundo. Não seria por isso que seu nome se assemelha tanto com as palavras “dumbly” (silencioso, taciturno) e dor (escaravelho dourado), lembrando que o escaravelho é um dos símbolos do renascimento e de Hermes?

O mais curioso disso tudo é que a obsessão dos alquimistas consistia em separar a “prima matéria” isto é, o caos primordial, num princípio ativo (alma) e num princípio passivo (corpo) e reuni-los novamente na figura de personagens. Para tal, deviam utilizar a “conjunctio” ou as “núpcias químicas” para alcançar o “filius sapientiae” ou “philosophorum”. Em outras palavras, os alquimistas perseguiam um modo de criar a pedra filosofal e, com ela, controlar a matéria prima da vida e da morte. Isso lembra alguém, ou mais especificamente “Você-Sabe-Quem”?

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A próxima parte será Harry Potter e as palavras mágicas. Por que os feitiços precisam vir acompanhados de palavras mágicas ou constituídas de poder?