Se “Êxodo: Deuses e Reis” fosse
apenas mais um filminho “caça níqueis” de qualquer diretor desconhecido,
contratado por encomenda por alguma grande produtora, eu não acreditaria se me
dissessem que ele foi dirigido por Ridley Scott. Diretor de “Blade Runner”, “Alien”,
“Gladiador”, “Hannibal”, só para citar alguns, Scott teria cacife suficiente
para comandar um filme épico sobre Moisés e a libertação dos hebreus. Não teve!
Cinema
Eu não sou um especialista para
emitir com alguma autoridade conhecimentos técnicos sobre como fazer cinema.
Mas, dá para “arranhar” uns palpites e outras coisinhas que ouvi por aí, de
gente que conhece.
Ponto positivo do filme, e isso
não precisa ser técnico para perceber, foi a produção. Gastaram bem o dinheiro
que deveria fabricar a sensação de estar no antigo Egito. Os efeitos especiais
são impressionantes, e Scott, da velha escola do cinema, não confiou em
cenários apenas feitos em C.G. Havia realidade na tela.
Pontos negativos, que são muitos.
Relato só alguns. Primeiro: o roteiro parece se perder em diálogos óbvios e o
ritmo é de dar sono. Em alguns momentos o tédio me pegou e eu juro que cometi o
imperdoável pecado de fechar os olhos de tanto constrangimento. Quando conflitos
surgiam, Ridley Scott deu um jeito de amenizar e não prosseguiu com algumas tensões
que poderiam dar boas viradas.
Segundo: pelo que sei, Ridley Scott
é um dos únicos diretores de Hollywood que se dá ao luxo de fazer os cortes
finais em seus filmes, sem interferências dos produtores. Mas o que foi aquilo?
Será que o editor estava de ressaca? Cenas, personagens e diálogos entravam e
saíam de cena sem nenhuma explicação. O filme está todo picotado. Eu perdi
sequências inteiras tentando entender onde as coisas se encaixavam. Seria Scott
tentando imitar Tarantino?
Terceiro: é um filme com
personagens fantasmas. Existe um conflito entre Moisés e Ramsés e, de vez em
quando, um conflito entre Moisés e Deus. De resto, é resto mesmo. Foram
subaproveitados bons papéis como o de Josué e de Aarão, que na narrativa de
Êxodo são essenciais. Na verdade, desapareceram. E Sigourney Weaver? Uma atriz
como ela sem nenhuma utilidade?
Quarto: É um Egito de brancos
anglo-saxões. Poucos negros, geralmente serviçais da elite governante. Por ouro
lado, também pudemos ver brancos distribuídos entre os hebreus escravos
(centenas de milhares). Problema menor, portanto.
Religião
Bem, aqui é a parte em que eu
tenho que dar a “carteirada”. Afinal, pelo menos, as décadas de estudos
teológicos e pesquisas em religião, devem valer alguma coisa.
Batida, com alguns milênios de
idade, acho difícil dar “spoiler” da história mais conhecida do livro de Êxodo.
Livro que foi ignorado por Ridley Scott, em troca de sua visão tosca sobre
religião. Digo isso porque tenho um palpite: Scott quis contar a história de
Moisés sob um ponto de vista naturalista, isto é, como seria a história se
anulássemos os elementos místicos e míticos. E ele conseguiu! E por isso ficou uma
história insossa, sem recheio, sem atrativos. Se pelo menos Scott tivesse
atualizado e adaptado a história para uma crítica política e religiosa sobre as
intolerâncias e xenofobias, já daria para o gasto. Mas não, preferiu dar a sua
versão racionalista sobre uma saga que perde totalmente o seu sentido quando
demitologizada. Tanto que só foram exploradas as pragas do Egito que pudessem
ter explicações causais, “científicas”. E não consigo ver senão como piada um
cortesão tentando explicar cientificamente as tais pragas.
Outros filmes nos ensinaram que
narrar uma história exatamente como deveria ter sido, é um “tiro no pé”. Vide
“As Aventuras de Pi”, “Peixe Grande”, “A Vida é Bela”. Filmes que nos
encaminham a acreditar que a busca de sentido em meio à tragédia é maior do que
a crueza da própria tragédia. É uma questão de sobrevivência, de não
enlouquecer. Que digam os judeus que, depois da desgraça do exílio babilônico,
não tinham outra alternativa senão contar a sua historia, incluindo a de
Moisés, a partir de seu umbigo. Razão pela qual nada sabemos sobre esse
personagem chamado Moisés, a não ser o que está na Bíblia. É pouco. A crítica
bíblica mais polêmica e impopular, já deu sinais, desde o século XIX, que Êxodo
conta aquilo que o povo hebreu quis contar. Não sejamos ingênuos, a Bíblia não
é um livro de História.
Por isso, sem as pitadas místicas
e os sentidos míticos, nenhuma história de religião vale a pena ser contada. As
da Bíblia muito menos. Não interessa se Moisés pode ou não ser comprovado
historicamente. Tirar dele o cajado, a grandiosa abertura do Mar Vermelho, os
conflitos de sua personalidade com seus interlocutores, inclusive com Deus, só
apequena a narrativa. Fazer de Moisés um “esquizofrênico”?
Se quer demitologizar e
desmistificar, que ao menos dê um sentido existencial para a história. Algo que
teólogos da envergadura de Karl Barth, R. Bultmann e Paul Tillich tão bem fizeram.
Ou, para ficar no campo do cinema, fizesse como Daren Aronofsky, diretor que,
para realizar o filme “Noé”, pesquisou e foi além da Bíblia, com boas inserções
dos livros de Enoque.
Não esperava ver “Os Dez
Mandamentos” de Cecil B. DeMille, ainda que seja difícil não comparar. Mas
esperava um pouco mais de respeito com as fontes. Como um livro de religião,
tirar o fundamento religioso do livro é, no mínimo, imperdoável e, no máximo,
para “Êxodo: Deuses e Reis”, passível de ser esquecido.