quarta-feira, 22 de julho de 2009

Harry Potter e o espelho


O universo de Harry Potter não é exatamente uma novidade. Quer dizer, para muitos leitores e telespectadores, talvez seja. E quando falo o universo de Harry Potter, leiamos o universo de J. K. Rowling, é claro. Universo que não se trata exatamente de uma invenção original, senão de uma reinvenção. Antes dela, encontramos na Europa C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Edith Nesbit, entre outros. Isso só para indicar os autores que trabalharam um tipo de literatura fantástica de porte semelhante, pois, a literatura fantástica em suas diversas seções, é muito maior.

Por outro lado, devemos considerar que o sucesso de Rowling se deve a pelo menos dois motivos. O primeiro é que, apesar da reinvenção, é uma bela reinvenção. Diria mesmo que se trata de um universo muito particular, nascido dos sonhos e da alma de uma autora que decidiu compartilhá-los conosco. O segundo motivo, ligado bem de perto ao primeiro, é que os sonhos de Rowling também são os nossos. Como Rowling, a nossa alma anseia por algo que não sabe exatamente o que. De certa forma, é como se a autora tivesse conseguido plasmar em palavras o que só sabemos por sentimentos. Mais do que palavras, Rowling plasmou imagens e, além de imagens, um universo imaginário que bate bem lá no fundo de nossas almas. Para muitos de nós, Rowling não está contando só a história de Harry Potter, mas a nossa também. Quantos de nós não nos identificamos com vários de seus personagens, sejam bons ou maus? Mesmo que os maus tenhamos varrido para debaixo do nosso tapete particular, reconhecendo que não queremos enfrentar as nossas sombras. E não é que Potter também tem que enfrentar tais sombras e, com isso, nos conduz a pensar o quanto é tolice ser “bonzinho”?

Ah, aquela escola! Não sou britânico e não tenho a mínima idéia do que seja estudar numa escola daquele tipo, naqueles moldes. E aquela arquitetura? Gótica da era vitoriana! A não ser em igrejas, nunca frequentei uma instituição educacional com aquela riqueza de detalhes. Mas é incrível como me identifiquei com aquele lugar. Lembro-me de desenhar “castelos” como aquele na minha adolescência. Como podemos nos sentir tão em casa em espaços que quase nunca experimentamos em nossa vida? Como personagens, animais, lugares e enredos podem ser nossos, tanto quanto de Rowling e, ao mesmo tempo, estranhos? Afinal, pessoas não falam a língua das cobras, não existem grifos, corujas-correios ou varinhas dotadas de poder como aqueles que lemos ou vemos nas histórias de Potter. É um mundo de ficção.

Ouso dizer, porém, que a ficção imita a vida, por mais ficção seja a história. Na vida real não existem ogros ou unicórnios, mas na vida imaginária sim. E até que ponto a vida imaginária é real? Não foi dela que nasceram os sonhos mais extraordinários do ser humano? Nela, voamos sem ainda termos inventado o avião. Nela, pensamos os átomos, sem ainda os termos descoberto. O celular, o computador, o robô, foram todos imaginados. Mais interessante ainda, muitos deles foram imaginados na literatura. A nossa epistemologia, ou seja, o conhecimento científico ou aquilo que conhecemos como “verdade”, nasceu primeiro de nossos sonhos, quando as palavras andavam de mãos dadas com a música, quando o nosso mundo era feito de mitos e não de certezas racionais. Logo, ogros ou unicórnios tem tanto sentido na vida real quanto colocarmos a mão no fogo. Pois é desse mundo imaginário que Lewis, Tolkien, Rowling e nós compartilhamos. É a mesma fonte. Fonte tão antiga quanto o homem. Querem ver como?

Vou eleger alguns elementos do universo potteriano e tentar apontar como muitos desses elementos estão em nossas almas desde antigamente. Para tal, vou me basear na antropologia do imaginário de Gilbert Durand e em algumas noções literárias de Gaston Bachelard. Mas farei isso de modo muito geral, de tal forma que prevaleçam mais as analogias, exemplos e a linguagem fática, em detrimento da linguagem técnica e acadêmica.

O primeiro elemento que escolho, bem ao acaso, é o espelho, que aparece em muitos momentos na narrativa potteriana. Trata-se de um elemento tipicamente nictomórfico, ou seja, um objeto ligado às imagens da noite, com certa aura mística. É isso que observamos, por exemplo, na mitologia do deus mexicano Tezcatlipoca, cujo nome significa “espelho fumegante”, pois é um espelho que foi feito da lava vulcânica, que manifesta o destino do mundo.

A água foi, possivelmente, o primeiro espelho da história. As imagens vindas dos espelhos são semelhantes àquelas vindas das águas: são duplicadas, desdobradas, redobradas. O reflexo é naturalmente um fator de redobramento. É por isso que em muitas obras literárias, do espelho surge o duplo do personagem. Veja, por exemplo, essa técnica nas obras de Guy de Maupassant, grande contista da literatura fantástica francesa. Ou ainda, o redobramento do personagem na tragédia clássica grega ou a inversão da história nos romances policiais. Aliás, no universo de Potter, os papéis se invertem e o assassino sádico e cruel revela-se no insuspeito homem honesto.

A duplicação da imagem na água foi a maldição de Narciso na mitologia grega, pois, em certo sentido, Narciso não consegue ver nada mais além de si mesmo, em seus desejos mais profundos e inconscientes. Ora, e não é Narciso que Harry vive no “Espelho de Ojesed” no primeiro livro, “Harry Potter e a pedra filosofal”?

Nas mitologias, existe uma assimilação lingüística entre a palavra mãe e a palavra água, geralmente ligadas a ideia uma deusa mãe ou uma Grande Deusa. É assim com a Astarte síria, a Athar árabe, a Ishtar babilônica, a Tanit de Cartagena. Todas mães férteis simbolizando a necessidade que os povos antigos tinham da fertilidade da terra. Porém, por vezes eram mães “traiçoeiras”, podendo ser desdobradas nas mulheres fatais. É aqui que encontramos, seguindo essa correspondência, a mulher sedutora pelo seu canto ou pelo seu olhar. Ela canta o mostra o que o homem deseja, como num espelho da própria alma do homem. Sereia, moira ou feiticeira, encanta pelos desejos. A propósito, a feminilidade e a água se encontram ligadas na Marfaye primordial que, etimologicamente, deu em inglês “Mermaid” (sereia).

Na tradição alquímica, a mãe das águas também dá o nome ao “aquaster”, isto é, a base para criar ou encontrar a matéria densa, cruda e grossa. Ela é o princípio da alma vital, que a psicologia chama de inconsciente. Em outros momentos ela é o mercúrio dos alquimistas, representado pelos traços do velho Hermes: união do arquétipo da anima (alma masculina) com o velho sábio (Dumbledore?). Aliás, diga-se de passagem, Rowling disse em uma entrevista que Dumbledore é gay. Talvez ela não saiba, mas Hermes é um ser entre mundos, isto é, até certo ponto é um andrógino, meio homem e meio mulher. E aqui não se trata de uma opção ou escolha sexual, mas de uma característica única (duas naturezas), exigida para o encargo que lhe cabe. Como Hermes, Dumbledore, com poucas palavras, ou quase nenhuma, desvenda os oráculos mais difíceis ou já os conhece antes que todo mundo. Não seria por isso que seu nome se assemelha tanto com as palavras “dumbly” (silencioso, taciturno) e dor (escaravelho dourado), lembrando que o escaravelho é um dos símbolos do renascimento e de Hermes?

O mais curioso disso tudo é que a obsessão dos alquimistas consistia em separar a “prima matéria” isto é, o caos primordial, num princípio ativo (alma) e num princípio passivo (corpo) e reuni-los novamente na figura de personagens. Para tal, deviam utilizar a “conjunctio” ou as “núpcias químicas” para alcançar o “filius sapientiae” ou “philosophorum”. Em outras palavras, os alquimistas perseguiam um modo de criar a pedra filosofal e, com ela, controlar a matéria prima da vida e da morte. Isso lembra alguém, ou mais especificamente “Você-Sabe-Quem”?

Mande comentários para esse texto indicando em que outros pontos da história de Harry Potter aparecem os espelhos.

A próxima parte será Harry Potter e as palavras mágicas. Por que os feitiços precisam vir acompanhados de palavras mágicas ou constituídas de poder?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O pavilhão do vazio


Poesia – José Lezama Lima

O pavilhão do vazio

Vou com o parafuso
perguntando na parede,
Um som sem cor
uma cor tapada com um manto.
Mas vacilo e momentaneamente
cego, apenas posso sentir-me.
De pronto, recordo,
com as unhas vou abrindo
o tokonoma na parede.
Necessito um pequeno vazio,
ali vou me recordando
para reaparecer de novo,
tocar-me e pôr a frente em seu lugar.
Um pequeno vazio na parede.

Estou em um café
multiplicador do tédio,
o insistente daiquirí
derrama com uma cara invisível
para morrer, para a primavera.
Recorro com as mãos
a solapa que me parece fria
Não espero nadar
e insisto em que alguém tem que chegar.
De pronto, com a unha
traço um pequeno buraco na mesa.
Logo tenho o tokomona, o vazio,
a companhia insuperável,
a conversação em uma esquina de Alexandria.
Estou com ele numa ronda
de patinadores pelo Prado.
Era um menino que respirava
todo o orvalho tenaz do céu,
já com o vazio, como um gato
que nos rodeia todo o corpo,
com um silêncio cheio de luzes.

Estar cercado do que nos rodeia
e cercado de nosso corpo,
a idéia fixa de que nossa alma
e sua envoltura cabem
em um pequeno vazio na parede
ou num papel de seda raspado com a unha.
Vou-me reduzindo,
sou um ponto que desaparece e volta
e cabe inteiro no tokonoma.
Faço-me invisível
e no reverso recobro meu corpo
nadando em uma praia,
rodeado de bacharéis com estandartes de neve,
de matemáticos e de jogadores de bola
descrevendo um sorvete de mamífero.
O vazio é mais pequeno que um naipe
e pode ser grande como o céu,
mas podemos fazê-lo com nossa unha
na borda de uma chícara de café
ou no céu que cai pelo nosso ombro.

O princípio se une com o tokonoma,
No vazio se pode esconder um canguru
Sem perder seu saltitante júbilo.
A aparição de uma cova
é misteriosa e vai desenrolando sua terrível.
Esconder-se ali é tremer,
Os cornos dos caçadores ressoam
No bosque congelado
Mas o vazio é calmo,
podemos atraí-lo com uma linha
e inaugurá-lo na insignificância.
Arranho na parede com a unha,
a cal vai caindo
como se fosse um pedaço da concha
da tartaruga celeste.
A aridez no vazio
É o primeiro e último caminho?
Durmo, no tokonoma
evaporo o outro que segue caminhando.

1º de Abril de 1976

Religião e ciência: um diálogo possível?


Rogério Gonçalves de Carvalho

All those... moments will be lost... like tears...in the rain.[1]

Introdução

No mundo moderno, pelo menos nos meios do senso comum, ou seja, na cosmovisão de leigos como eu e você, não há mais razão para duvidar de que exista um conhecimento científico. Não mais perguntamos se as verdades da ciência são ou não são mesmo verdadeiras. Não questionamos se a ciência dá o seu veredicto final sobre qualquer assunto. Aliás, na verdade, muitas vezes só confiamos em juízos que podem ser comprovados pela ciência.

A questão religiosa não fica para trás. Temos muitas dúvidas se vale a pena discutir esse assunto sob o ponto de vista científico. Afinal, dizem muitos: “religião é uma questão de foro íntimo.” Além disso, a fé não é explicável pelos paradigmas científicos e, de certa forma, muitas questões possuem um pano de fundo que só a razão não dá conta. O ser humano é perpassado por realidades múltiplas que exigem pontos de vistas que tenham sido construídos sob diversos ângulos. A existência é mais do que racional ou razoável, ela é também dramática.

Entretanto, parece que a história da ciência, da filosofia e da religião apontam para uma outra direção: houve, e provavelmente sempre haverá discussões sobre a validade da ciência e da religião nos diversos aspectos da vida do ser humano. Mesmo que elas façam parte da nossa vida, a questão perene retorna: ciência e religião conseguem dialogar e chegar a um consenso?

Na tentativa de responder a questão, alguns otimistas vêem a atual era o momento da unidade entre ciência e religião. De um lado os esotéricos da “Nova Era”, que acreditam que finalmente o ser humano encontrou o fim de um ciclo e o começo de outro – se bem que ainda carecem de rigor conceitual para convencer do que realmente estão falando –, do outro lado os pensadores dos “paradigmas emergentes” que, principalmente partindo de uma nova filosofia da linguagem, chamam a atenção para a possibilidade de unir ciência e religião numa “neo-epistemologia”[2].

Na verdade, o problema epistemológico ou do conhecimento sempre acompanhou os diversos temas de discussão filosófica, inclusive o problema científico e o religioso. Apesar de encontrarmos pontos semelhantes e até convergentes entre uma história da filosofia da religião e uma história da filosofia da ciência, só modernamente procurou-se um conhecimento que empregasse meios mais eficazes de análise do problema religioso e científico como um problema antropológico, um problema do conhecimento humano.

Portanto, quando perguntamos pela ciência ou pela religião, assim como quando perguntamos pelo imanente ou pelo transcendente, estamos fazendo perguntas que, no fundo, dizem respeito mais ao próprio humano do que às coisas em si. Não cabe, desse modo, questionar a fé e a razão como se elas fossem essências existentes por si mesmas. Se assim fizermos, estaremos causando um esvaziamento das perguntas e, consequentemente, uma redução das respostas. A relação entre ciência e religião não pode ser exaurida por respostas que apenas afirmem ou neguem suas relações, sendo que, tanto a ciência quanto a religião, assim como o problema que as cercam, são invenções do humano.

Dizendo de outro modo, o diálogo entre ciência e religião não é um problema proposto pela realidade em si, é um problema pensado, que só existe de fato no mundo das idéias dos homens. No mundo fora do conhecimento humano não há questionamentos sobre ciência e religião e, mesmo no mundo dos homens, ciência e religião já possuem os seus próprios diálogos. Sem pedir licença para fazerem isso e, sem seguirem regras claras sobre o que pensamos sobre ambas, furam barreiras e ultrapassam os limites de suas especificidades. Ciência e religião cumprem as suas próprias regras quanto às suas negações e sínteses e não esperam que pensadores ou movimentos façam isso por elas. Ou seja, o diálogo ciência/religião fica aquém da realidade em si, e não a preenche, como, no mundo do conhecimento humano, vai além e ultrapassa respostas definidas.

Ainda podemos exemplificar esse processo quando perguntamos sobre a revelação divina, ou seja, se é possível que Deus possa se dar a conhecer ao ser humano, ou quando perguntamos sobre a verdade empírica, ou seja, se é possível que a realidade possa se dar a conhecer ao ser humano. Tanto uma pergunta como outra nos aponta que as respostas podem ser múltiplas e que, por mais que nos apeguemos a qualquer uma delas, elas nunca chegarão a uma conclusão satisfatória. Uma vez que todos nós estamos comprometidos com a construção de uma pergunta, também estamos comprometidos com a construção de uma resposta. Enfim, o real problema é humano.

Mas, se não temos meios de alcançar a realidade em si, e só chegamos até ela com indagações e respostas de nosso próprio cunho, voltemos ao nosso mundo humano e persistamos com a questão.

A possibilidade de um conhecimento apenas religioso

Para que possamos entender que ligação possui a racionalidade moderna com o fenômeno religioso, sem dúvida devemos recorrer a descrição, pelo menos sucinta, de uma epistemologia[3] da religião. Entrementes, seu objeto de análise será a religião e as condições em que esta é possível na relação do homem com o sagrado e o transcendental.

Não há dúvida de que o problema religioso atinge o ser humano ontologicamente e realiza-se na sua existência, por isso, uma epistemologia da religião é possibilidade a partir daquilo que transcende ao homem, mas que também o toca expressivamente.

A filosofia grega pode ser o ponto de partida onde o homem começou a pensar o cosmos e a sua realidade concreta como totalidade. Essa progressão ocorreu vagarosamente à medida que a filosofia foi se desenvolvendo e se revelando eficiente em suas incursões sobre teorias do conhecimento cada vez mais inteligíveis. Nessa objetividade, aparece também a questão sobre Deus e a religião. Inicialmente na forma dos mitos[4] e, aos poucos, através de cosmologias e antropologias mais específicas.[5]

A atualização desse conhecimento, que antes ainda estava preso sob características míticas, aconteceu na Idade Média numa volta para a subjetividade pensante. Entretanto, isso se deu a partir de um conhecimento do homem no mundo através da razão e sua natural extensão: a experimentação científica.

Deus e a religião passaram a ser mediados pela subjetividade e pela essência do objeto. O pensamento filosófico não se contentou com as coisas como se apresentavam, antes tentou esclarecer o ser e a essência da religião.

Com o Iluminismo a razão passou a ser o principal padrão para a religião, o que fez dela uma vítima da crítica racional. As ciências experimentais cresceram e a fé tornou-se objeto de suspeita como ideologia. Os pressupostos da Idade Média e da Antigüidade perderam grandativamente seu poder de evidência, que antes era suficiente num mundo pensado metafisicamente.

Diante desse quadro e do processo de emancipação iluminista e científica, encontramos pelo menos três atitudes a respeito do fenômeno religioso:

a) Negação total da religião: A religião como consciência falsa ou simples ideologia para, como tal, dever negá-la. Essa atitude encontra-se em Feuerbach, Nietzsche, Freud e em alguns marxistas.

b) Aceitação total da religião: Desde o século XVII, surgem esforços apologéticos para justificar a religião no mundo moderno porque esta (principalmente o cristianismo) se distanciou da evolução histórica do mundo técnico-científico. Os limites de tal filosofia da religião aparecem na chamada teologia natural, na filosofia transcendental, existencial e personalista do nosso século.

c) Descrição empírica e análise das concepções e instituições religiosas: Com Max Weber, E. Durkheim, Lévy-Bruhl e L. Strauss, formaram-se grupos que estudam as religiões do ponto de vista histórico, psicológico, sociológico, da análise da linguagem, enfim, mediante pesquisas empíricas.

Resumindo, desde a antiguidade grega até as teorias mais modernas, a preocupação religiosa sempre foi fonte de discussões com a racionalidade e com a ciência. Isso possibilitou o surgimento de uma epistemologia da religião ou uma teoria do conhecimento que a explicasse.

A possibilidade de um conhecimento apenas científico

No embate entre religião e ciência devemos considerar que a segunda é muito recente e carece da confiança e do “monopólio” que a primeira conquistou. Se, por um lado, a religião dominou por milênios a interpretação e a tradução que o homem fez de sua realidade circundante, por outro lado, a ciência ainda briga por espaço frente a religião, mas também frente ao senso comum. Aliás, ouso dizer que um dos grandes opositores da ciência não é tanto a religião, nas suas infinitas formas, dogmas e “essências”, mas o senso comum, a opinião sem verificação; tão caduca quanto seus deuses.

Logo, a ciência também faz coro com a religião quando é apresentada no quadro das três reações ou posturas quanto ao método que lhe cabe:

a) A ciência se confundia com a religião. Outrora, astronomia, matemática, química, medicina e outras não tinham autonomia e serviam para legitimar o saber religioso. Na verdade, a confusão tem o sentido exato de “com-fundir”, ou seja, religião e ciência eram uma e a mesma coisa. Não podiam ser vistas ainda de forma separada e faziam parte de um mesmo saber: o saber do homem antigo, do homem pré-moderno.

b) A ciência se separou da religião. O que era astrologia, alquimia, magia, etc., se desenvolvem sem a tutela dos deuses e se convertem nas conhecidas astronomia, química, medicina, etc. Com a virada antropológica do século do Renascimento e, posteriormente, com a autonomia dada pela racionalidade do século XVIII, desenvolvida nas tecnologias da vida moderna no século XIX, a ciência se torna a nova “deusa” da humanidade. Temos o saber do homem moderno.

c) A ciência se confunde com a filosofia e com a religião. Na “era dos extremos”[6], a ciência passa a ser protagonista de grandes acertos e encantamentos, mas também de grandes equívocos e imposturas. Em pleno século XX e XXI, a ciência entra nas veredas que outrora pertenciam apenas à filosofia e à religião e, além de emitir juízos a partir dos seus limites metodológicos, de vez em quando “pula a cerca” e emite juízos sobre as “coisas primeiras” e sobre as “coisas últimas”.

Em resumo, semelhante à religião, a ciência buscou se desenvolver, ora reclamando sua independência, ora assumindo o papel de rainha do conhecimento. Mas, igualmente como a religião, esbarrou numa epistemologia que se prende em seu próprio método e à cabeça pensante do ser humano.

A possibilidade do “nenhum conhecimento”

Não temos referências muito seguras e nenhuma certeza de que estejamos passando por uma pós-modernidade. Aliás, a incerteza é, justamente, conforme afirmam os estudiosos do assunto, uma das características principais da pós-modernidade. Não existe nem mesmo consenso entre filósofos, antropólogos, sociólogos e outros curiosos do tema sobre o que significa a pós-modernidade ou quais são os fundamentos de estarmos vivendo uma era de pós-modernidade, hiper-modernidade, pós-pós-modernidade, modernidade real, etc.

Por outro lado, diante dos tantos “manuais” da pós-modernidade escritos até o momento, parece que existem alguns vestígios do eixo epistemológico que estaríamos vivendo hoje[7]. Dentre alguns desses vestígios, um bastante curioso é o que podemos denominar de “a era da desconfiança”: nada se crê; tudo se crê.

A “era da desconfiança” nada mais é do que uma reação natural contra as duas grandes narrativas ou interpretações sobre o mundo, sobre a realidade, ou seja, a religião e a ciência. As duas, com seus avatares e seus prosélitos, prometeram mundos e fundos e falharam, não cumpriram com o que panfletaram.

A religião, por seu lado, dominante por mais tempo na história das interpretações humanas, deu razoável conforto em face da ameaça da morte: foi uma tentativa de ora negá-la, com suas oratórias metafísicas, ora domesticá-la por hábitos místicos. Depois veio a ciência moderna que, desmascarando as “mentiras” da religião, como quando um adolescente descobre que seus pais o “enganaram” durante toda a fase infantil, trouxe igualmente um razoável conforto em face da ameaça da morte: também foi uma tentativa de ora negá-la, com seus rompantes de heroísmo, ora domesticá-la, pelo discurso racional.

Mas, ambas tropeçaram, porque não compreenderam ainda muito bem que suas interpretações são efêmeras, relativas e limitadas. Além de falharem ao tentar vencer a morte, a ameaça da existência humana, prometeram a felicidade eterna, que facilmente foi contrariada com o advento das patologias humanas registradas na história do terror das guerras, da fome, do sofrimento e da infelicidade crônica vivida por muitos povos.

É por isso que, dizem, a “era da desconfiança” se instalou. Gerada na certeza de um céu feliz e de uma terra feliz, nasceu a suspeita de que isso tudo nada mais era do que uma ilusão, uma fantasia do homem por causa do seu desejo de ser o centro do universo, o centro da história.

Agora, porém, no homem dito pós-moderno, a busca por certezas vindas da religião e da ciência convivem com as incertezas, com a perspectiva relativa de tudo. Com medo de ser novamente enganado, prefere perceber o mundo como coisa líquida e rarefeita, jamais como coisa concreta. É a possibilidade do “nenhum conhecimento”, ou, do conhecimento sem certezas absolutas. Segundo esse paradigma, que insiste em não ser paradigma, o novo momento epistemológico conduz a incerteza epistemológica como seu carro chefe.

No ciclo do tempo, inventamos o mito sem religião: narramos para não morrer; coisa que aprendemos com a religião, mas, ao mesmo tempo, narramos com um olho de soslaio no manual; coisa que aprendemos com a ciência. Indo de um lado para o outro, pendendo da religião para a ciência, acabamos encontrando uma interpretação mais real da vida: a interpretação que oscila, que não suporta o correto caminho, antes, elege adentrar por veredas que se bifurcam, pelo labirinto do minotauro. Não seria isso mais divertido? Não seria isso mais perigoso? Não sabemos porque não conhecemos. Ou melhor, não sabemos porque conhecemos, e o que conhecemos nos condena a permanecermos nos limites da religião e da ciência; de preferência brigando ou se abraçando como duas irmãs cujos pais somos nós mesmos.

Conclusão

Sim, o diálogo entre religião e ciência é possível, desde que superemos a ingênua idéia de que uma e outra são realidades fora da nossa cabeça. Se há uma falácia que precisamos evitar quando entramos nesse tema do diálogo entre modos de conhecimentos distintos é a reificação, isto é, transformar a religião e a ciência em coisas que podem se atrair ou se repelir, como se fossem realidades físicas.

Ora, a religião e a ciência são conhecimentos do “homo sapiens”. São realidades sim, mas são realidades antropológicas. Talvez aquilo para o qual elas dirigem ou focalizam seus discursos seja real em si, existente por si mesmo. Mas, mesmo que utilizemos o nosso “jus esperniandis”, a nossa incontrolável obsessão por domesticar a realidade, no fim, teremos que nos contentar com a religião e a ciência numa interface que se faz no mundo das idéias. Bem, nesse mundo, tudo é possível.

Referências Bibliográficas

GOLDSCHMIDT, V. A religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963.

JAEGER, W. Paidéia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

JAMESON, F. Pós-Modernismo. 2 ed. São Paulo: Ática, 1997.

HOBSBAWN, E. J. A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

JAPIASSU, H. As paixões da ciência. 2 ed. São Paulo: Letras & Letras, 1999.



[1] “Todos aqueles momentos serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva”. Frase do andróide Roy, protagonizado pelo ator Rutger Hauer no filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, 1982, Columbia TriStar - Warner.

[2] Edgar Morin, Stéphane Lupasco e Gilbert Durand são alguns deles.

[3] Termo que usamos aqui no sentido de busca da verdade enquanto sujeito cognoscível ou teoria do conhecimento.

[4] Note que Platão ainda se utiliza de alguns mitos em suas explicações dialéticas. Uma boa discussão sobre esse tema podemos encontrar em Goldschidt (1963) e em Jaeger (2001).

[5] Mesmo a ciência conhecida como moderna foi seduzida por questões místicas e transcendentais em seus discursos. Veja sobre esse problema em Japiassu (1999).

[6] Hobsbawn (2008) faz um balanço geral do século XX que ele denomina de “era dos extremos”. Observe principalmente as drásticas mudanças pelas quais o homem passou na virada do século XIX para o século XX.

[7] Recomendo as instigantes deduções encontradas nas obras de Fredric Jameson (JAMESON 1997).