quinta-feira, 22 de maio de 2008

Minority Report - A Nova Lei



(Minority Report, EUA, 2002)

Gênero: Ficção
Duração: 145 min
Distribuidora: Fox
Produtora(s): 20th Century Fox, Amblin Entertainment, Blue Tulip, Cruise-Wagner Productions, DreamWorks SKG
Diretor: Steven Spielberg

Roteiristas: Scott Frank, Jon Cohen

Elenco:Tom Cruise, Colin Farrell, Max von Sydow, Samantha Morton, Steve Harris, Neal McDonough, Patrick Kilpatrick, Jessica Capshaw, Richard Coca, Mike Binder, Kirk B.R. Woller, Klea Scott, Daniel London, Frank Grillo, Anna Maria Horsford, Sarah Simmons, Eugene Osment, James Henderson, Vene L. Arcoraci, Erica Ford, Keith Flippen, Nathan Taylor, Radmar Agana Jao, Karina Logue, Elizabeth Anne Smith, Victoria Kelleher, Jim Rash, Stephen Ramsey, Tom Choi, Tom Whitenight, Billy Morts, Michael Dickman, Matthew Dickman, Lois Smith, Tim Blake Nelson, George Wallace, Ann Ryerson, Kathryn Morris, Spencer Treat Clark, Tyler Patrick Jones, Dominic Scott Kay, Brennen Means, Arye Gross, Ashley Crow, Joel Gretsch, Jessica Harper, Bertell Lawrence, Jason Antoon, William Mesnik, Severin Wunderman, Max Trumpower, Allie Raye, Rocael Rueda Sr., Nicholas Edwin Barb, Catfish Bates, Peter Stormare, Caroline Lagerfelt, Danny Lopes, Vanessa Cedotal, Katy Boyer, Adrianna Kamosa, Elizabeth Kamosa, Laurel Kamosa, Kari Gordon, Raquel Gordon, Fiona Hale, Pamela Roberts, Clement Blake, Jerry Perchesky, Victor Raider-Wexler, Nancy Linehan Charles, Nadia Axakowsky, Tony Hill, Dude Walker, Drakeel Burns, William Mapother, Paul Wasilewski, Morgan Hasson, Andrew Sandler, Kimiko Gelman, Caitlin Mao, Bonnie Morgan, Kathi Copeland, Lucille M. Oliver, Ana Maria Quintana, Gene Wheeler, Payman Kayvanfar, Tonya Ivey, David Stifel, Kurt Sinclair, Rebecca Ritz, Beverly Morgan, John Bennett, Maureen Dunn, Ron Ulstad, Blake Bashoff, David Doty, Gina Gallego, Anne Judson-Yager, Meredith Monroe, Benita Krista Nall, Shannon O'Hurley, Jorge Pallo, Elizabeth Payne, Ethan Sherman, Jarah, Miles Dinsmoor, Don Austin, Ramona BadescuKeith Campbell, Robert Randolph Caton, Cameron Crowe, Cameron Diaz, Bourke Floyd, Scott Frank, Steven Hack, David Hornsby, Riley Schmidt, Christian Taylor, Anne Judson Yagher



Fotógrafo: Janusz Kaminski

Montagem: Michael Kahn

1. Um filme “dialógico”
Steven Spielberg não dá ponto sem nó. Quando não faz um filme apenas para entretenimento, se envereda pelas adaptações inteligentes. Aí a fome com a vontade de comer se unem e ganhamos um filme a altura de um Minority Report, ou seja, entretenimento mais inteligência. Não à toa. O filme foi inspirado no conto de Philip Dick, o mesmo autor de Blade Runner – O caçador de andróides.
Basicamente a narrativa gira em redor de uma questão central: O que é a liberdade? Desdobrada, outras perguntas surgem: Somos predestinados ou temos livre arbítrio? Até onde vai nossa privacidade quando a segurança exige um “Grande Irmão” (Big Brother – termo cunhado pelo escritor George Orwell em seu livro “1984”)? Somos culpados por nossas faltas ou é uma questão de sobrevivência?
Outros filmes abordaram ao seu modo a mesma questão. Mais recentemente Matrix Reloaded mostra Neo a se perguntar se ele é livre para escolher ou não, o que em si é uma contradição, pois ele mesmo é denominado de “o Predestinado”.
Mais antigo, mas não menos inteligente, o filme O Show de Truman, uma espécie de “Big Brother” que alimenta um sistema de entretenimento, salienta como a liberdade pode ser falsa quando vigiada e explorada. Aliás, esse filme é homenageado nas cenas finais de Matrix Reloaded quando Neo se encontra com o “Grande Arquiteto”, o inventor da Matrix.
Um pouco mais distante, mas inesquecível, temos Forest Gump – O contador de histórias. O filme todo aponta para a tensão que existe no decorrer da vida entre o destino e a liberdade, entre o que já está pré-determinado e o que pode ser escolhido. Por isso o filme começa com uma pena voando e pousando nos pés de Gump, e termina com a mesma pena alçando vôo e saindo dos pés de Gump. A pena é metáfora de nós mesmos.
Não seria difícil estabelecer uma lista infindável de filmes que poderiam dialogar com Minority Report, mas creio ser suficiente as grandezas que citamos acima para percebermos o quanto os filmes são dialógicos, para usar aqui uma expressão de Mikhail Bakhtin.
Na verdade Minority Report é um filme de teses, de hipóteses e perguntas sobre a vida, sendo que algumas são respondidas, outras são deixadas no ar; o espectador que faça a sua leitura. Pois é nesse vácuo que eu entro, o que não impede que o leitor também o faça.
Sem precisar gastar muito tempo e espaço para contar a história do filme, algo que o leitor irá executar assistindo-o, apenas cito que Minority Report se passa no ano 2054 e é sobre um departamento “pré-crime” que se utiliza de um trio de médiums chamados de Precognoscentes (Pré-Cogs), mutantes que vivem numa piscina e que tem visões dos crimes antes que eles aconteçam. Uma polícia especializada tenta desvendar as pistas e impedir o fato, sendo que John Anderton (Tom Cruise) é o chefe das missões. Alia-se a isso um imaginário tecnológico de um possível futuro, eficientemente elaborado pelos efeitos especiais da ILM (Industrial Light & Magic) de George Lucas.
Ingredientes no caldeirão, Minority Report dá bastante pano para manga, o suficiente para observarmos e analisarmos pelo menos duas dimensões que considero importantes na narrativa: religião e filosofia.

2. Alguns elementos religiosos
A tentação é forte para alguém que trabalha com religião como eu, e como a carne é fraca, relaxo e me esbaldo nas visões e devaneios de religião que pude extrair do filme. Desse modo, já logo de início, separo o joio do trigo e faço a seguintes considerações:
2.1. O local onde os Pré-Cogs ficam é chamado de templo e ninguém, nem os policiais, podem entrar lá. Só pessoas autorizadas pelo sistema pré-crime entram além de John Anderton, o chefe das missões (um sacerdote?).
2.2. Parece loucura, mas Anderton passa pelo mesmo processo pelo qual passou o apóstolo São Paulo. Em Atos e nas epístolas do Novo Testamento (como Coríntios e Gálatas), São Paulo é descrito como um crente no sistema legal e religioso dos fariseus, tendo perseguido zelosamente os cristãos. Anderton também crê no sistema legal do pré-crime que o leva a perseguir inocentes que nenhum crime ainda cometeram. Porém, muito semelhante ao que aconteceu com São Paulo, Anderton se “converte” e muda de identidade. Isso fica evidente quando o “chefe” faz uma cirurgia para “trocar” de olhos. Seria uma alusão disfarçada da cegueira temporária que o apóstolo Paulo sofreu assim que mudou de identidade? Nesse caso, "trocar de olhos", tanto em Anderton, como em Paulo, significaria "trocar de visão de vida" ou de cosmovisão.
2.3. A aura sagrada que envolve o sistema é tal, que ela não passa desapercebida nem mesmo pelo agente federal Danny Witwer (Colin Farrell de A Guerra de Hart e O Demolidor), que afirma ter feito algum tempo de seminário para chegar à essa conclusão. Chega a dizer que o departamento deve considerar os Pré-Cogs algo mais que humanos (divinos?).
2.4. As suspeitas de Witwer são confirmadas ao longo do filme, pois os Pré-Cogs são endeusados e, de certa forma, compõe uma trindade, que depois se descobre, é imperfeita. Mas até lá, os mutantes serão vistos e reverenciados como divindades. Exemplo engraçado disso no filme é a atitude de Rufus, que se ajoelha diante de Agatha (Samantha Morton), a pré-cog principal, e lhe diz: “Jesus Cristo”, e em seguida se confessa. Rufus ganha dinheiro e negocia com o entretenimento virtual. Possui todo tipo de parafernália tecnológica que possa ajudar Anderton em sua busca por respostas no possível “relatório discordante” (assim é traduzido “Minority Report”) ainda intacto em Agatha.
2.5. Como todo sistema religioso, esse também possui a sua utopia, o seu desejo por um mundo perfeito e puro. Além disso, para que esse oráculo futurístico se cumpra, existe a necessidade de endeusar o sistema. Várias frases nesse sentido são repetidas: “o pré-crime é perfeito...”; “imagine um mundo sem assassinos...”; “se há falha, ela é humana...”. A própria mídia nas ruas e estabelecimentos se parecem muito com as propagandas institucionais que conhecemos das grandes associações religiosas e totalitaristas.
2.6. Os condenados estão sob a zeladoria de um carcereiro (Tim Blake Nelson) que se entretém tocando hinos religiosos em seu órgão. Inclusive, no final do filme, quando a ex-esposa de Anderton, Kathryn Morris (que também fez I. A. Inteligência Artificial) entra para salvar o seu ex-marido, o carcereiro está tocando “Jesus, Alegria dos Homens” de Johann Sebastian Bach. Poucos minutos atrás, quando Anderton chegou à prisão, já condenado, o mesmo carcereiro diz: “Agora você faz parte do meu ‘rebanho’ John”.
2.7. John Anderton é o único que “pode ver”. Essa frase é repetida por Agatha à ele várias vezes. Ou seja, ele é o único que sabe o que é sofrer a perda de alguém que se ama muito, assim como Agatha que perdeu sua mãe. Ele entende exatamente como é a dor de Agatha. Seria essa uma menção messiânica, o que carrega as dores do mundo, o que compreende o sofrimento humano?

3. Alguns elementos filosóficos
Os elementos religiosos estão bastante fragmentados e espalhados por todo o filme. Por outro lado, os elementos filosóficos, apesar de também espalhados, estão melhor pontuados. Pode-se ver o encadeamento de dois temas principais do começo ao fim do filme.

3.1. “Big Brother” – O olho que tudo vê
3.1.1. O olhar, o olho, as imagens, o vigiar, parecem ser algumas das obsessões do roteiro. A começar pelo próprio futuro criado pelo filme onde todos sem exceção são identificados pela leitura dos olhos. As “aranhas-robôs”, por exemplo, identificam cada habitante pelos olhos.
3.1.2. Uma das mensagens filosóficas do filme com essa abordagem é clara: não existe sistema totalitário que resista sem um bom controle das individualidades, sem que os indivíduos sejam vigiados. Logo, impossível não retornarmos ao que dissemos de forma passageira, “1984” de George Orwell é visita obrigatória. Foi ele quem cunhou a expressão “Big Brother” (Grande Irmão) ou aquele que tudo vê, que tem os poderes, como Deus, da onisciência e da onipresença. O próprio autor do romance disse certa vez: “Tudo de sério que escrevi desde 1936 foi escrito com a intenção direta ou indireta de atacar o totalitarismo...”
3.1.3. Isso significa que Minority Report apenas refina as idéias de Orwell, utilizadas sem culpa ou vergonha por outros filmes e teses. Atualmente, inclusive, não se fala da tecnologia de segurança por câmeras de vídeo (lojas, elevadores, ruas etc) sem tocar nas intuições de Orwell. Tecnologia que no filme é abundante.
3.1.4. Hilário mas ao mesmo tempo sério, em uma cena, Anderton compra droga de um cego que lhe diz um velho ditado: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei.” Pura gague, pois na verdade nessa terra onde todos tem olhos, quem não tem olhos é rei. Isso é confirmado quando o traficante surge das sombras do beco e mostra-lhe o rosto: não tem os dois olhos, pois arrancou-os. Mais fácil assim para não ser identificado. Seria uma sugestão à Anderton que acaba realmente “trocando” de olhos para não ser controlado como os outros e assim encontrar as suas próprias respostas?

3.2. Corrida para a sobrevivência
3.2.1. Correr parece ser uma das imagens e uma das palavras mais exploradas no filme. Exemplo vemos nas corridas de Anderton por entre os becos da cidade, que causa suspeitas no chefão do pré-crime, Lamar (Max Von Sydow de O Sétimo Selo; O Exorcista e Amor Além da Vida). Em uma das cenas, depois de correr e se encontrar com o traficante que lhe mostra a face, Anderton chega em casa e assiste a imagem de seu filho desaparecido. Numa delas o filho diz: “Preciso continuar correndo...” Anderton repete a frase do filho e o faz outras vezes na duração do filme.
3.2.2. Anderton, ao tentar correr dos seus ex-colegas de pré-crime, diz: “Todos fogem...” Essa frase é autenticada pela cena em que Anderton se encontra com a inventora ou mãe do pré-crime, Dra Hinneman (Lois Smith que esteve em Juventude Transviada com James Dean). Nessa cena a Doutora lhe afirma: “Cada criatura está interessada em uma só coisa: na sobrevivência.” Prova isso apertando entre a palma da mão uma planta que, vendo-se em perigo, lhe fere a mão na tentativa de fugir pela sobrevivência.
3.2.3. O senso de sobrevivência e defesa da vida são mais fortes do que as regras. O desejo, os sentimentos mais primitivos nos impulsionam à quebrar as leis, a fugir do sistema, a negar e trair a fidelidade do grupo. O sistema impede a corrida, o fluir natural dos desejos humanos, impede a escolha.
3.2.4. Independente do sistema pré-crime, ninguém é inocente quando se pode fazer escolhas. A “perversão” faz parte da natureza humana e, por mais que ela seja punida ou proibida, ela sempre se manifestará de um jeito ou de outro. O lado “animalesco” do homem não pode ser escondido, vetado, encoberto. Quanto mais isso é implementado, mais ele aparece. Talvez seja por isso que na cidadela tecnológica de Rufus, onde todo desejo pode ser satisfeito, pois isso não é oferecido pelo sistema rígido do pré-crime, um cidadão deseja “matar o seu chefe”. Rufus insiste com outras diversões, mas o cidadão não larga sua vingança: matar o chefe.
3.2.5. O filme não faz apologia da violência ou da liberdade sem controle, mas deixa claro que, seja de um lado ou do outro, a coisa descamba. Controle demais causa desastres e injustiça, liberdade demais causa a possibilidade de satisfazer perversões e anarquizar a sociedade. Logo, não se sabe mais quem carrega a justiça, se a polícia ou o bandido. Veja isso na cena em que Anderton está se recuperando de sua cirurgia nos olhos; na tela ao fundo é mostrada a palavra “cops” (tiras ou policiais), mas a música de fundo é “bad boys”. Em outra cena a Dra Hinneman conta à Anderton que os pré-cogs ganharam seus dons de prever os crimes graças à ação das drogas no organismo de seus pais. De novo não sabemos quem é bandido ou mocinho. A vida depende dos dois? Somos todos ao mesmo tempo as duas coisas? O mal é necessário?
3.2.6. Agatha diz à Anderton no final do filme, quando está prestes a ser pego: “Corra...”. Diz à sua mãe, antes de vê-la assassinada: “Corra...”. Diz à Anderton que seu filho “corre tão depressa, como o pai...” Possivelmente o filho que ele ainda terá. Enfim, Agatha prevê algo mais importante que um relatório pré-crime, prevê que, para além do crime, a vida precisa ser respeitada diante da ameaça à sobrevivência. A melhor forma de fazer isso: correr...
3.2.7. Em outra cena para se rir muito, Spielberg junta o tema dos olhos com o da corrida. Anderton, depois de ter “trocado” de olhos por uma cirurgia, leva seus olhos originais em um saco plástico para entrar no templo dos pré-cogs, já que a leitura de seus olhos lhe permitirão o livre acesso. Ao retirar os olhos do saco plástico, eles caem e escorregam pela descida do corredor que dá para o templo. Anderton corre atrás de seus olhos e os alcança. Salva apenas um deles, mas é o bastante para submeter o globo ocular à leitura da porta automática. Moral: A corrida pela sobrevivência usa todas as armas, inclusive as que querem destruí-la.

4. Estamos condenados à liberdade
Estamos condenados à liberdade. Paradoxal, mas resume a filosofia de Jean-Paul Sartre, que por sua vez indica uma das reflexões que podemos fazer ao assistir Minority Report. Possivelmente o seu existencialismo dê o ponto com nó de Spielberg e nos faça compreender que a redução da vida à um sistema ou à liberdade jamais fará do homem um ser feliz. É uma questão de escolha se inventamos regras ou fugimos delas. Melhor seria se um Deus rígido ou uma sociedade limitada nos dessem todas as diretrizes para a nossa felicidade, mas é puro auto-engano esperar isso. Ou, talvez melhor seria liberdade plena, sem restrições, de forma a respondermos por nossos próprios atos. O problema: a maioria das vezes não sabemos exatamente para onde vai dar esse caminho. Voltamos assim ao ponto inicial: estamos condenados à liberdade. Com regras ou sem elas, com sistema ou sem ele, é uma questão de escolha.
Estamos destinados à liberdade, mas à uma liberdade feita de limitações, de fragmentos, de memórias espalhadas, de um passado meio incerto. Como Anderton, podemos escolher não atirar e matar. Mas e se o sistema já escolheu isso por você, e se ele já lhe preparou uma armadilha? Será isso possível, ou realmente somos donos do nosso nariz?
Anderton orquestra e interpreta apenas fragmentos de um futuro aparentemente exato quando manipula as imagens que tem diante dele antes de ir atrás do seu criminoso. Cedo descobre que não há inocentes, que todos são criminosos e precisam correr para sobreviver. Como nós, Anderton percebe que a liberdade é relativa, que no fundo a sua vida e a nossa são construídas sobre fragmentos, sobre desejos e paixões incertas, sobre infindáveis incertezas que vamos resolvendo aos poucos até que as coisas se pareçam minimamente suportáveis.
Pareço muito pessimista? Está sentindo náuseas? Náuseas? Isso me faz lembrar novamente Sartre. Assista então a um filmezinho ordinário como "Retratos de uma Obsessão"; pouca bilheteria, filme esquecido, mas interessante. A obsessão do protagonista é colecionar fotos de uma família. Os retalhos, os fragmentos daquela família, a memória espalhada, faz com que ele se sinta parte dela. Simula para sobreviver. Ou, se quiser, complete o tema com outro filme “fragmentado” como "Amnésia". Nele você verá que sem memória a única coisa que sobra é o presente, artifício catalisador que pode levar qualquer um à beira da loucura. Já pensou? Viver apenas o dia que Deus deu? Não, não queremos essa liberdade, queremos a liberdade que se baseia na invenção de um passado e de um futuro, incertos, retalhados, mas que nos dão a ilusão de que precisamos.
Quem somos afinal? Nós escolhemos as coisas ou elas nos escolhem? Como dizia o pai do poderoso Lamar do pré-crime: “Não se escolhe as coisas em que se acredita, elas escolhem você.”
Para não dizer que eu só citei filmes, aí vai uma resposta (ou será mais uma pergunta?) de um escritor que viveu na pele e escreveu na forma de contos as idiossincrasias do ser humano: “Eu vivia como todo mundo, contemplando a vida com os olhos abertos e cegos do homem, sem me espantar e sem compreender. Vivia como vivem os animais, como vivemos todos, executando todas as funções da existência, examinando e acreditando ver, acreditando saber, acreditando conhecer o que me cercava, quando, um dia, percebi que tudo é falso.” (Guy de Maupassant, “Carta de um louco”, Contos fantásticos)
Só nos resta, como a Anderton, esperar a bola da vez. Será que nela estará escrito o meu ou o seu nome?

06/2003
Abril Despedaçado: (Abril Despedaçado, Brasil, França, Suíça, 2001)
Duração: 105 min
Distribuidora: Lumiére
Produtoras: Bac Filmes, Dan Valley Film AG, Haut et Court, VideoFilmes, Videofilmes Produções Artísticas
Diretor: Walter Salles
Roteiristas: Karim Ainouz, Sérgio Machado, Walter Salles
Produtores: Lillian Birnbaum, Arthur Cohn, Jean Labadie, Mauricio Andrade Ramos, Carole Scotta, Marcelo Torres
Compositores: Ed Cortês, Antonio Pinto, Beto Villares
Fotógrafo: Walter Carvalho
Montagem: Isabelle Rathery
Elenco Principal
José Dumont: Pai
Rodrigo Santoro: Tonho
Rita Assemany: Mãe
Luiz Carlos Vasconcelos: Salustiano
Ravi Ramos Lacerda: Pacu
Flavia Marco Antonio: Clara
Everaldo Pontes: Velho cego
Othon Bastos: Participação especial


Um filme incomparável

Num desses dias sentei em frente ao meu aparelho de TV para “tirar o atraso” em relação a alguns filmes que ainda não tinha tido a oportunidade de assistir nos cinemas. Senti falta de conhecer as últimas produções brasileiras. De tanto ouvir comentários, o alvo foi fácil, encarei Abril Despedaçado de Walter Salles. Sabia que ele tinha feito Central do Brasil e pensei: acho difícil que Abril Despedaçado ultrapasse o sucesso de Central do Brasil. De fato, não ultrapassou. Mas só não ultrapassou o sucesso do anterior, isto é, os prêmios, bilheteria, fama. Já no quesito linguagem, tocou-me mais.
Alguns críticos afirmam que Abril Despedaçado é um “filme menor” em relação a Central do Brasil, e mais ainda quando comparado a outro mega-sucesso como Cidade de Deus. Mas, mesmo assim, senti-me mais atraído por Abril Despedaçado. Talvez porque nunca gostei muito do realismo seco de algumas produções cinematográficas, principalmente aquelas que se originam de uma literatura que se preza pelas estéticas da pobreza e da violência. Não. Não faço parte do grupo que gosta de dizer que essas estéticas servem apenas para vender, para transformarem a realidade brasileira em fetiche. Isso é avaliação de quem não sabe ainda para que serve o cinema, de gente que ainda não conseguiu se livrar de uma crítica ascética e ética em relação às artes. Apesar de Central do Brasil e Cidade de Deus terem expressado um setor da realidade brasileira de forma singular, Abril Despedaçado exige maior reflexão, dá ao espectador a sensação de que está diante de uma parábola, de uma história universal e não local. Mas acho que aí está o “charme” do filme, ou seja, permite uma leitura aberta e rica. Como certa vez afirmou Arnaldo Jabor, cada filme tem o seu próprio espaço, e a linguagem de um filme não necessariamente deve ser a mesma em comparação com outro.

A adaptação

É Abril de 1910, e uma camisa balança ao vento esperando que uma mancha de sangue amarele, pois quando isso acontecer, é porque chegou a hora da vingança. Tonho é o filho do meio, e agora o mais velho da família Breves, que constantemente o constrange a vingar o irmão morto, vítima de uma luta ancestral entre famílias inimigas. Tem 20 anos, e sabe que se cumprir sua missão, será perseguido pela família rival, exatamente conforme o código de ética estabelecido há muito tempo. Pacu (Ravi Ramos Lacerda), seu irmão mais novo, é o único que desaprova a lógica absurda da violência. Pensa que a sua imaginação de criança pode acabar com essa guerra. No final é exatamente isso o que acontece.
Abril Despedaçado foi inspirado na obra literária homônima do escritor albanês Ismail Kadaré. Nela o escritor revela as histórias de vendeta de seu país, e que impressionam pelas semelhanças que possuem com as histórias de vingança encontradas no começo do século XX no sertão brasileiro. O próprio Salles fez um longo trabalho de pesquisa sobre as características das guerras entre famílias no Brasil, que formam o pano de fundo onde Tonho (Rodrigo Santoro) deve tomar sua decisão. Tendo que vingar o irmão mais velho, logo se tornará o próximo alvo de vingança da família adversária. Como uma regra que jamais pode ser quebrada, vê-se a angústia misturada à resignação por parte das duas famílias que protagonizam o filme.

Um Auto de Páscoa?

No dia em que assisti ao filme, fiquei ruminando as cenas, a história, as impressões que tive. Não pude evitar o “insight” e passei e fazer uma hermenêutica pascal, diga-se logo, bem diferente daquilo que o filme realmente quis dizer, quis transmitir. Evidentemente o filme não narra uma história sobre a Páscoa, sobre o Antigo Testamento ou seja lá o que for do cristianismo. Não foi isso o que Kadaré, Salles ou os roteiristas pensaram quando executaram Abril Despedaçado. Mas, depois que fiz essa leitura, fiquei surpreso quando, ao ler uma resenha do filme, o próprio Walter Salles afirma que optou por um filme que tivesse uma qualidade fabular, que não precisasse estar fincado num espaço geográfico totalmente realista.
Isso significa que Abril Despedaçado, assim como qualquer obra de arte, não está fechado para uma leitura plural, dialógica, imaginária. Pelo contrário, conforme nos aponta Umberto Eco, toda obra é uma obra aberta, toda obra permite um apossar-se por parte do receptor e por parte do mundo que já não mais pertence ao autor. Logo, mesmo sabendo que o filme contém uma história específica, nele também existe uma reserva muito grande de “leituras”, de interpretações que fazem com que ele seja enriquecido e torne-se uma obra que transcende o tempo e o espaço.
Nesse caso, minha “segunda chance” não estava tão perdida assim, e a mensagem é simples: Pacu, assim como Cristo em sua paixão pascal, de forma arquetípica, conquistou o fim de um ritual de sacrifícios e vinganças exigidas por uma lei imutável e perversa.
Pacu morreu no lugar do irmão e pôs fim a um processo que parecia interminável. Como Cristo, substituiu todos os sacrifícios, todas as mortes e toda a lei de vingança que exigia sangue. Como num Auto de Páscoa, quebrou a tradição burra, circular, que parecia nunca acabar. Tradição, tempo repetitivo e eterno retorno que foi formidavelmente simbolizado pela rigidez do movimento da bolandeira (máquina para moer a cana), onde nem os bois agüentaram. Ora, e diante da ética tradicional, da conduta impensada, não agimos como gado? “A gente é que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar”, diz Pacu. É a imobilidade das leis misturada ao movimento repetitivo das vidas, só rompido com a morte do menino, que vai parar no mar, num dia de chuva, lugar e fenômeno quase impossíveis no sertão, no deserto, só para confirmar o oráculo de Antonio Conselheiro: “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”; ou para autenticar o milagre do “Deus ex machina” de Aristóteles.
Como disse Isaías, o profeta: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz...”.
Aliás, será que na Albânia, assim como no Brasil, a Páscoa é celebrada no mês de Abril? Se não for, pelo menos na fábula é.
Boa Páscoa!
04/2003

Deus é Brasileiro




“Deus é brasileiro” (Brasil, 2002, 120 min.)
Com Antonio Fagundes, Paloma Duarte e Wagner Moura
Distr. Columbia Pictures

Inaugurando as opiniões, críticas e reflexões sobre os diversos filmes que assisti e tenho assistido nos últimos anos, inclusive como fruto de vivências em sala de aula com meus alunos, faço aqui a minha projeção daquele que considero um dos melhores filmes da chamada “retomada” do cinema brasileiro. Trata-se de Deus é Brasileiro, 15º filme de Cacá Diegues, baseado no conto homônimo “Deus é brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro, que pode ser encontrado no livro "Já podeis da pátria filhos e outras histórias".
Filme de beleza fotográfica impecável e trilha sonora revelando o que temos de melhor em nossa cultura, mostra como o cinema brasileiro superou a sua fase pornográfica. Mas é só isso? Parece que é! Pelo menos essa é a opinião da maioria das pessoas com quem tenho conversado sobre o filme. Assistentes passíveis, herdeiros da preguiça televisiva, apenas engoliram num ato pantagruélico as cenas que desfilavam diante de si. Espectadores da telinha, não conseguiram mais do que uma interpretação “literal” do filme e, torcendo o nariz, interpelaram: Mas essa é a história? Que chocha!
Não, definitivamente Deus é brasileiro não é só uma história debochada de Deus e nem uma visão escrachada da realidade brasileira. É claro que a ironia e o uso dos estereótipos estão presentes, mas não de forma barata, banal, mas de forma inteligente e metafórica. Aliás, se há uma coisa que é retratada com certa fidelidade no filme é a realidade brasileira: paradoxalmente bela e feia, singela e grosseira. E é nessa realidade que todos os clichês sobre Deus no Brasil são retomados, usados como uma espécie de moldura que enquadra todas as cenas.
Mas será mesmo Deus brasileiro? Talvez seja essa a pergunta que o filme tenta responder até o seu fim. E é a partir dessa pergunta que faço aqui a minha leitura pessoal. Digo novamente: é a “minha leitura” e não a do diretor, de João Ubaldo ou dos críticos que me antecederam.
O primeiro golpe que o filme desfere é sobre o local onde “Deus mora”, o céu. Lugar burocrático, dominado pelas religiões mediadoras de Deus (veja um indivíduo tratado ao telefone público com as mesmas formalidades que são utilizadas nos serviços telefônicos das grandes empresas), cheio de filas, horários, pressa, relembrando as metrópoles desumanizadas. E o céu é azul! Mas não se engane, as cores são frias, geladas, lembrando um Deus europeu. Pelo menos nesse começo podemos perguntar: Será Deus europeu? Será ele um anglo-saxão sério, grave, não dado às brincadeiras?
Se Deus é europeu, não podemos afirmar com certeza, mas que ele “torna-se” brasileiro isso fica claro quando chega aqui ao Brasil. Brasil de cores vivas e quentes, transpira o desejo e a vontade de transgredir. Será a cor do inferno? As tonalidades vermelha e laranja predominam até quando é focado o verde. O caminhão roubado é vermelho, a camiseta de Wagner Moura (ator que brilha mais que Fagundes) é da cor laranja com detalhes vermelhos e a camisola de Paloma Duarte no fim do filme é estampada com grandes rosas vermelhas. Mero acaso?
Apesar do “vermelho-Brasil” Deus está lá, “azuzim”, igual ao céu de onde veio: camisa xadrez azul, calça azul, cabelos brancos e um guarda-chuva. Guarda-chuva? Em pleno sertão brasileiro onde não chove? Por isso talvez o guarda-chuva vire guarda-sol no restante da narrativa.
Porém, isso é só o começo da “conversão” divina, que aos poucos ganha o contorno transgressor da ética do jeitinho: não interfere nas trapaças, viaja em um caminhão roubado, ganha dinheiro do povo “travestindo-se” de apresentadora, faz mágicas. Ou seja, para Deus ser brasileiro ele precisa primeiro enculturar-se, pensar como um brasileiro e agir como um brasileiro. No mínimo, ele deve saber quais as expectativas que qualquer brasileiro médio e cristão tem dele. Uma crítica contra o cristianismo institucionalizado, que nada entende sobre a religiosidade popular?
O Deus “totalmente outro” de Karl Barth, teólogo suíço, torna-se o Deus humano, próximo, mas tão perto que é impossível não cair na tentação da indiferença ou do interesse. Afinal, para que serve Deus se não para realizar milagres? Diante da nossa inclinação à passividade, Deus é brasileiro e o Brasil é o país do futuro! Nada mais enganoso.
Em meio a esse desenrolar de um Deus aprendiz, aparecem os estereótipos. Cada um deles é um golpe nas concepções equivocadas que geralmente temos a respeito de algumas personagens religiosas. O padre, que se espera seja casto, tem relações sexuais com uma freira. O pastor, de onde se imagina encontrar lisura e honestidade crente, encanta Deus com seu discurso triunfalista. Resultado: Até Deus se rende a “dar todo o seu dinheiro”. O santo, de quem pressupõe um dedicado teísmo, é ateu. Mas será que é preciso ser santo para ser bom? Ou será preciso ser bom para ser santo? Que Jesus nos diga novamente com a parábola do bom samaritano: de quem se esperava o pior, foi quem deu o melhor.
O fio condutor que perpassa todo o filme é a narrativa da criação, que é revisitada por Deus no “Paraíso-Brasil”. Deus revê sua criação em detalhes: águas, terra, céu, árvores, aves (chega a imitar o canto de algumas delas) e os dias, que passam conforme “lhe dá na telha”. “E viu Deus que isto era bom”. Tão bom que nas últimas cenas, antes de desaparecer, num ato simbólico que repete a “auto-avaliação divina sobre a criação”, Deus lança ao rio o seu caderninho de anotações, que por toda a história utilizou para anotar as possíveis “reformas” daquelas coisas que pretendia mudar na terra. Não foi preciso, pois “viu que tudo era bom”.
Mas e a missão de encontrar um santo brasileiro para que pudesse passar as férias entre estrelas e galáxias? À resposta cabe uma outra pergunta: Para que um santo substituto depois que Deus se converte à brasilidade? Muito além de um burocrático santo que cuide de tudo, Deus redescobre o paraíso perdido. Mais: depois que toda a criação é “revista e atualizada”, Deus prepara uma situação para que o primeiro casal, Adão e Eva, seja novamente encarnado pelo casal que está no barco, o mesmo que tomou no início de sua viagem. “E criou Deus macho e fêmea”.
Por fim, é claro, de nada adiantaria criar macho e fêmea sem desejo, sem transgressão. Por isso “Deus plantou uma árvore no jardim”. Não uma macieira ou um pinheiro, mas uma pitangueira. Será esse o sinal de que o Deus estrangeiro foi absorvido, devorado antropofagicamente e devolvido como um humano, popular e “pecador” e, além de tudo, brasileiro?
Não tenho dúvidas, esse filme participa do melhor que temos das narrativas de resistência e ironia da tradição latino-americana e brasileira. Assim como acontece com Auto da Compadecida, aqui a religiosidade popular é reverenciada contra a religiosidade da burguesia dominadora. Semelhante a um Aleijadinho ou a um Kondori, João Ubaldo e Cacá Diegues revelam-se artífices de uma linguagem irônica, da subversão inteligente expressa na religiosidade dos “vencidos”.
Se alguém quer saber se Deus é brasileiro, precisa antes “nascer de novo”, largar mão de seus paradigmas enrijecidos e deixar que a cultura brasileira sobre Deus surja na sua mais pura intertextualidade, ou permanecerá preso às cadeias do sistema da danação eterna.
Sim, Deus é brasileiro brincou com os valores religiosos, mas foi uma séria brincadeira.
03/2003

Peixe Grande




Peixe Grande

(Big Fish – EUA – 2003)
Gênero: Comédia/Drama
Tempo de Duração: 125 minutos
Estúdio: Columbia Pictures Corporation / The Zanuck Company / Jinks/Cohen Company
Distribuição: Columbia Pictures / Sony Pictures Entertainment
Direção: Tim Burton
Roteiro: John August, baseado em livro de Daniel Wallace
Produção: Bruce Cohen e Dan Jinks
Música: Danny Elfman
Fotografia: Philippe Rousselot
Direção de Arte: Roy Barnes, Robert Fechtman, Jack Johnston e Richard L. Johnston
Efeitos Especiais: Sony Pictures Imageworks / Stan Winston Studio / The Moving Picture Company
ElencoAlbert Finney (Ed Bloom)
Ewan McGregor (Ed Bloom – jovem)
Billy Crudup (Will Bloom, o filho de Ed Blomm)
Jessica Lange (Sandra Bloom)Alison Lohman (Sandra Bloom – jovem)
Helena Bonham Carter (Jenny – a bruxa)
Robert Guillaume (Dr. Bennett)
Marion Cotillard (Josephine)
Matthew McGrory (Karl – o gigante)
David Denman (Don Price - 18 aos 22 anos)
Missi Pyle (Mildred)
Loudon Wainwright III (Beamen)
Ada Tai (Ping)Arlene Tai (Jing)
Steve Buscemi (Norther Winslow – o poeta)
Danny DeVito (Amos Calloway – Dono do circo)
Deep Roy (Sr. Soggybottom)
Perry Walston (Ed Bloom - 10 anos)
Hailey Anne Nelson (Jenny - 8 anos)

Grayson Stone (Will Bloom - 6 aos 8 anos)


Se você fosse explicar a uma criança a virtude da humildade, como faria isso? Imagino que contaria a ela uma história, não? E a um adulto? Explicaria conceitos, daria definições diversas ou apresentaria uma tese? Que tal usar o conto “A raposa e o gato” dos irmãos Grimm?

Era uma vez um gato que passeava pelo bosque onde nascera. Encontrou uma raposa e foi logo falando:
- Bom dia, Dona Raposa!
A Dona raposa, muito orgulhosa e de focinho empinado, olhou para o gato dos pés à cabeça e disse:
- Oh, insignificante caçador de ratos, como se atreve a dirigir-me a palavra? Como alguém como eu, com tantas habilidades, poderia ouvir a voz de um gato que mal sabe se virar? Mas afinal, quais são suas habilidades?
- Apenas uma, respondeu o gato humildemente. Quando os cachorros correm atrás de mim, subo nas árvores e me salvo.
- Só isso, perguntou a raposa surpresa. Eu sou especialista em dezenas de habilidades, além de ser muito esperta.
Naquele mesmo momento chegava um caçador com seus cães de caça. O gato subiu em uma árvore, indo para o galho mais alto. Estando lá em cima, gritou para a Dona raposa:
- E agora Dona raposa, não vai usar as suas habilidades?
Mas os cachorros acabaram com ela.
- Pobre raposa! Exclamou o gato. Você com suas muitas habilidades e esperteza e foi caçada. Eu, com uma só habilidade, salvei-me.

Aposto que você deve estar pensando que uma historinha dessas só serve para entreter crianças. Engano seu. Os irmãos Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhem Karl Grimm eram docentes da Universidade de Gottingen, Alemanha, e criaram seus contos a partir das lendas populares de seu país. Ingressaram na Academia de Ciências de Berlim e elaboraram uma coleção de contos conhecidos no mundo todo.

O grande problema com o nosso mundo ocidental e, herdeiro do racionalismo cartesiano, é a dificuldade de compreender o que é a verdade. Confundimos verdade com o método empírico, isto é, se puder ser provado, é verdade, senão...

Meus alunos de teologia ficam muito zangados comigo quando tento mostrar para eles que o mundo antigo apresentado na Bíblia usava muito o discurso narrativo para contar e dar sentido aos eventos do passado. Eram muito utilizados gêneros como contos, novelas, lendas, sagas etc. Até uma “dramaturgia” encontramos no livro de Jó! Muitos desses alunos acham que a verdade só pode ser verdade se puder ser provada, se o que aconteceu, “aconteceu de fato”.

Muitas vezes, quando explico a formação do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), vários alunos levantam-se em defesa do fato pelo fato. Não admitem que aquele povo possa ter utilizado a mesma história muitas vezes e dado vários sentidos a ela de acordo com a época em que viveram. O mais irônico disso tudo é que esses mesmos alunos reinterpretam os textos sagrados conforme suas crises e experiências, apontando novos sentidos, e nem se dão conta disso. Fazem o que os homens do passado fizeram, mas não admitem que isso possa ter acontecido; não suportam que o fato possa ter se misturado à narração, e a narração à ficção. Pena que não sejam apenas alunos que pensem assim, raposas velhas também.

Acredito que sabendo dessa dificuldade que nós adultos temos com a verdade empacotada em histórias de pessoas é que Tim Burton fez o filme Peixe Grande. Aliás, para Burton não é nova essa experiência de contar histórias: colocou na telona Edward Mãos de Tesoura, outra bela narrativa fabular para criticar a sociedade purista norte-americana.

Peixe Grande é um caso comum de fracasso de bilheteria, mas unanimidade quando indicado na propaganda do boca-a-boca.

Ed Bloom (Albert Finney/Ewan McGregor) é o protagonista das aventuras. Na velhice descobre que está doente e, visitado pelo filho, percebe que não resta outros ouvidos para escutar suas histórias a não ser o de sua nora, para quem narra seu passado mesclado com fantasia. Tendo saído jovem de sua pequena cidade-natal, no Alabama, para realizar uma volta ao mundo, narra sua vida desde o nascimento.

O filme gira em torno da oposição do filho contra o pai. O filho representando o mundo empírico e racional; o pai representando o mundo fantástico e imaginário. Essa tensão encontra um belo final que envolve o expectador, que também como o filho, Will Blomm, sai do cinema disposto a ouvir mais suas próprias histórias. É que fazendo isso descobrimos o quanto é terapêutico narrar; recontar é um processo de mudar o passado pelas experiências do presente.

Mas por que Peixe Grande? Que nome estranho para um filme. Porém, logo no início surge o grande protagonista que começa a história e também a termina: um peixe; metáfora do próprio Ed Blomm: “Alguns peixes não podem ser fisgados. Eles têm aquele toque especial”.

Aliás, a história terminar como começou, isto é, com Ed Blomm na forma de um peixe, não é de graça. Obviamente temos aqui a velha fórmula do eterno retorno que tanto marcou o modo de narrar dos povos primitivos, dos nossos antepassados. Não tendo acesso a um modo “científico” de narrar a vida, narravam pelo mito. Ora, e não é que a palavra grega “mythos” significa exatamente isso: narrar? Logo, não é de se assustar que Blomm prefira as fantasias em vez das racionalizações.

A idéia de eterno retorno, de fim que repete o começo, nos leva imediatamente à idéia de redobramento, que é outro modo de expressão do nosso imaginário. Na literatura é farta a imagem do duplo, do alterego, do outro-eu, que por vezes se confunde com a imagem do labirinto e do espelho. No filme, o Blomm da realidade, o Blomm doente e com um filho descrente, tem um oposto e semelhante no mundo da fantasia, do sonho. Mundo este que se liga ao espaço da profundidade, do inconsciente e do eu onírico. Por isso, não por acaso a psicologia profunda de Jung e a filosofia de Bachelard vêem nas águas profundas e no peixe, símbolos do inconsciente. Não será por essa a razão que a palavra “blomm” nos leva a pensar numa onomatopéia do mergulho?

A repetição de uma história que recomeça pelo final, ou o redobramento de uma personagem, são formas de narrar que pretendem enfrentar a condição de mortalidade. Algo que se repete nunca acaba, nunca morre. Isso se faz pela dramatização do tempo ou com a invenção de um outro tempo e de um outro mundo – daí a utopia. Blomm, ao inventar um mundo novo e maravilhoso, negou o poder da morte e eternizou-se em suas histórias. A narração no final do filme não mente: “Um homem conta suas histórias tantas vezes que ele se mistura a elas e elas sobrevivem a ele, e é desse jeito que ele se torna imortal”.


A narrativa e as imagens apresentam suas intenções para com a figura do peixe. Primeiro o peixe é comparado com a família de Blomm, pois o peixe que ele pesca está “cheio de ovas”, o que expressa o seu carinho e afeto profundo pela família.

Também o peixe representa a sua esposa: “O único jeito de fisgar uma mulher inalcançável é dar-lhe uma aliança de ouro”, diz ele. Nas imagens iniciais, Blomm fisga o peixe com a sua aliança de casamento, e isso faz com que ele ligue a dificuldade de fisgar um peixe imaginário com a dificuldade que foi conseguir casar-se com Sandra Blomm, história que ele narra logo em seguida. Aliás, muito parecida com a narrativa de Jacó no Antigo Testamento, pois Blomm serve seu patrão por vários anos até poder conhecer sua futura mulher. Moral da história: só o difícil é estimulante, dizia o poeta José Lezama Lima.

Outra conotação do peixe no filme vemos no próprio Blomm, que conta que passou a crescer mais do que os outros rapazes e achou a solução numa enciclopédia que afirmava que um peixe dourado poderia crescer mais se estivesse fora do aquário, em um lugar maior. Ele concluiu então que a melhor maneira de se adaptar seria saindo da cidade que estava ficando pequena demais para ele, como um aquário. Blomm percebeu que tinha de sair do seu mundinho para crescer, amadurecer, tornar-se alguém maior do que aquilo que era. A sua fala ao gigante é reveladora: “Já parou para pensar que não é você que é grande demais mas essa cidade é que é pequena demais? Para um homem grande é preciso uma cidade grande. Se você acha que uma cidade como essa é pequena demais para você, imagina para o tamanho da minha ambição”. Blomm é um peixe grande demais para ficar preso a um só lugar, à falta de criatividade e, principalmente, aos fatos pelos fatos. Não se é grande por causa do tamanho (Blomm vence o gigante como Davi venceu Golias), mas por causa da ambição.

Na seqüência Tim Burton mostra passo a passo a trajetória de Bloom para alcançar o seu objetivo de ser grande, e como esse objetivo é assaltado logo de cara com a tentação da felicidade eterna, do paraíso, da utopia e, com essas coisas, a possibilidade da preguiça, da falta de motivação e do fim da caminhada. Na cidade da tranqüilidade (Spectre) o fim da caminhada é simbolizado pelos sapatos que devem ser tirados e pendurados, para jamais serem novamente calçados. Mas “pendurar as chuteiras” não é o melhor negócio para quem quer ser grande, para quem quer continuar em frente, caminhando. Nem sempre o “céu” é o limite.

Algumas curiosidades apontam que essa cidade seria a figura do céu, do paraíso: um homem de branco o recebe já sabendo o seu nome; tudo na cidade é perfeito; todos são felizes e não há nada para fazer; no fim da vida Blomm vai para lá. Isso significa que Ed se deparou muito cedo com essa cidade, ainda não era a hora.

Mais próximo do final, quando Blomm já é um “peixe” de bom tamanho, capaz negociante, decide comprar a cidade pela qual passara, agora em decadência “por causa da especulação financeira”. Ele compra a cidade só pelo prazer de preservá-la e, claro, guardar um pedacinho daquele céu. Ele mesmo diz duas vezes: “O destino tem um jeito de enredar as pessoas e pegá-las de surpresa”. A única que sabia disso era a “bruxa” (a menina da cidade “celeste” e ela são as mesmas), aquela que funcionou como o oráculo que desvendou que o seu destino estava aberto, que “não era assim que ele deveria morrer”.

Alguns não sabem o que fazer com a liberdade. É isso o que acontece com o poeta da cidade perfeita. Tendo os olhos abertos por Ed, o poeta foge de seu destino tedioso de um mundo perfeito demais. Porém, exagera na dose e decide roubar um banco. Irônico mas verdadeiro. Isso me fez lembrar de outro filme, O Demolidor (Demolition Man), em que Sylvester Stallone, vindo do passado mas entediado e preso numa cidade do futuro, afirma que nada adianta uma cidade onde tudo é perfeito mas que não se pode falar palavrões, peidar e nem se entupir de hambúrgueres. Como disse certa vez Rubem Alves: se no céu tudo for perfeito, deve ser uma chatice jogar sinuca, ninguém perde!

No fim do filme Blomm tem o seu batismo, o retorno para a água e o recomeço de tudo. Entretanto, agora quem conta o fim da história não é ele e sim o filho. Repare como a voz narrativa no início do filme é feita pelo filho de Blomm que diz: “Os fatos não podem vir separados da ficção e nem o homem do mito. O melhor jeito é contar exatamente como aconteceu”.

O filme conta exatamente como aconteceu, assim como contamos nossas histórias e memórias exatamente como aconteceram, sem separações da ficção nem dos mitos. Ou alguém acha que conta a sua história sem afetos e sentidos, sem mitos e ficções que nos enraízam na vida? Num mundo do hiper-realismo materialista e capitalista, do positivismo lógico diante de um cotidiano multívoco, Tim Burton retoma a fantasia, o infante que pode estar escondido atrás do adulto já sisudo, que se leva muito a sério. Afinal, não é você que vai ficar, são suas histórias.

É fácil cair na tentação de Will Bloom, de contar somente os fatos, sem nenhum sabor. Os fatos carregam as marcas do tempo e da morte, enquanto as histórias carregam as marcas da memória e da eternidade. Bloom, como ele mesmo afirma, ficou sedento a vida toda, como um peixe fora d’água, como um imaginador num mundo de fatos. Tinha sede por encontrar a alma da vida confrontando um ambiente cético e regido pela razão estéril.

Semelhante ao “Fisher King” (Rei Pescador) da lenda e das narrativas que construíram o mito do Santo Graal, Blomm é um homem com uma ferida que não sara até que encontre o fim de sua história, que na verdade é o recomeço, o contar de novo. Contar mil histórias e terminar é semelhante a morrer, começar tudo de novo pela mil e uma é se eternizar. Portanto, antes de se decepcionar com a velha história do pescador: ouça. Assim encontramos a felicidade, pois ela não está na chegada mas na caminhada.

09/2004