segunda-feira, 19 de maio de 2008

À Espera de um Milagre



À Espera de um Milagre


(The Green Mile, EUA, 1999)
Duração: 188 min
Distribuidora: Warner Home Video
Produtoras: Castle Rock Entertainment, Darkwoods Productions, Warner Bros.
Diretor: Frank Darabont
Roteiristas: Stephen King, Frank Darabont
Elenco: Tom Hanks, David Morse, Bonnie Hunt, Michael Clarke Duncan, James Cromwell, Michael Jeter, Graham Greene, Doug Hutchison, Sam Rockwell, Barry Pepper, Jeffrey DeMunn, Patricia Clarkson, Harry Dean Stanton, Dabbs Greer, Eve Brent, William Sadler, Mark C. Miles
Produtores: Frank Darabont, David Valdes
Compositor: Thomas Newman
Fotógrafo: David Tattersall

Nessa Páscoa até que seria interessante assistir a um bom filme na televisão. Reanimar o espírito cristão e rememorar os valores do cristianismo não é má idéia. Acho até que é por isso que as emissoras nessa época do ano recheiam suas programações com filmes que abordam de Jesus à Noé. O problema é que, com algumas exceções, as produções e a execução desses filmes nem sempre são muito atraentes. Além disso, temos que contar com a repetição, que convenhamos, já deu o que tinha que dar. Mas, que tal pegar na locadora um filme mais “novo”, com produção do recente ano de 1999? Quem sabe um filme como À espera de um Milagre?
Ah, é claro, passou na televisão e você já assistiu. E por isso mesmo você deve estar se perguntando: O que tem esse filme com a Páscoa?
Minha resposta: Nada e tudo. O filme À Espera de um Milagre nada diz diretamente sobre a Páscoa. Obviamente Frank Darabont e Stephen King, roteiristas do filme, jamais pensaram na Páscoa quando idealizaram e executaram o filme. Bem, pelo menos, acho que não. Até porque Stephen King é um escritor de livros de terror e não de narrativas bíblicas, apesar da Páscoa cristã também ter pitadas de horror.
Em todo caso, até que possa ser provado o contrário, não se pode exigir que o espectador fique amarrado a apenas uma leitura, somente a uma simples e pobre interpretação do filme. Eu, por exemplo, não consigo. Pode ser até heterodoxa essa minha mania, mas tenho ganho mais compreensão do cinema com ela do que sem ela. Bem disse Leonardo Boff (Tempo de Transcendência) que leis, regimes autoritários, sistemas e prisões jamais poderão anular, proibir ou prender nossa capacidade de transcender, de ir além do óbvio, do restrito. Daí me dou o direito de ver nesse filme algo que na verdade pareceu-me evidente, que saltou-me aos olhos.
Por outro lado, você pode ainda estar se perguntando: Mas dá certo? Funciona?
Se dá certo ou funciona eu não sei. Quer dizer, dá certo para mim, funciona para mim. Além do mais, se pararmos de fazer perguntas tão utilitaristas, talvez, no mínimo, encontremos um bom exercício de transcendência; algo não só técnico, ou útil, mas encantador, que bate na alma.
Pois foi isso o que aconteceu comigo ao assistir À espera de um Milagre. Simbolicamente o filme parecia a encenação da Páscoa, ou seja, da paixão de Cristo em pleno anos 30.
A história se passa no corredor da morte (denominado “a milha verde”) de uma prisão dos Estados Unidos, onde condenados aguardam para serem executados na cadeira elétrica. Até aí nada de novo quando comparamos esse filme com outros que abordam o mesmo tema (vide Um Sonho de Liberdade, do mesmo Darabont, ou Silêncio dos Inocentes). A não ser por um preso que destaca-se pelo seu tamanho (um enorme negrão de dois metros de altura e mais de 100 quilos). Trata-se de Jeff Coffey (Michael Clarke Duncan), que se diz inocente de um crime cometido contra duas crianças. Elas foram assassinadas e encontradas nos braços de Coffey.
Mas Coffey não destaca-se apenas pela sua imagem, de forma contrastante ele também comporta uma doçura que dá dó. Incapaz de ferir alguém, apesar do medo dos presos e dos guardas, com toques manuais demonstra a capacidade de curar. Chega inclusive a curar uma dolorosa infecção urinária de Paul Edgecomb (Tom Hanks), o chefe dos guardas. Aliás, ele é o responsável por uma nova investigação em torno da morte das duas meninas, pois permaneciam dúvidas sobre um crime cometido por alguém tão altruísta como Coffey.
Junto com Coffey, quer dizer, na mesma condição que Coffey, estão outros dois condenados: Wild Bill, mal até os tutanos, e um francês (Del), pacífico e consciente de seu crime. Há ainda o sobrinho do diretor da prisão, o também guarda Wetmore, obssessionado pela morte e pela violência da cadeira elétrica.
Num clima cada vez mais tenso, cada um é entregue ao seu destino. O francês vai para a execução, enquanto Wetmore mata a tiros Wild Bill. Por fim, Coffey caminha para o seu fim, mas não sem entregar um dom a Edgecomb e a um ratinho (Mr Gingles), o dom da “vida eterna”.
Basicamente o roteiro trata da condição humana, ou seja, todo ser humano caminha inevitavelmente para a morte, como se todos, sem exceção, estivessem no seu “corredor da morte”, ou como o próprio Paul Edgecomb filosofa, “todos nós caminhamos a nossa ‘milha verde’” (The green mile é o nome original do filme).
Agora é a minha vez de fazer as perguntas: Não seria a história de Jeff Coffey uma paródia da história de Cristo? Sua caminhada para a cadeira elétrica não poderia ser comparada à caminhada de Cristo para a cruz?
Jeff Coffey (J. C. – Ele chama a atenção para o seu nome algumas vezes), assim como Cristo, morreu inocente, condenado pelo que não fez. Apenas fez milagres, e pagou o desprezo com amor incondicional por todos na cadeia, indistintamente. Como Cristo, morreu junto com dois ladrões, um bom, arrependido, e um mal, assassinado. E, finalmente, como Cristo, depois de ser executado, concedeu “vida eterna”, simbolicamente revelada pela impossibilidade do guarda Paul Edgecomb morrer.
É interessante notar que assim como Cristo celebra sua última ceia pascal, Coffey também. Entretanto, além da ceia, Coffey pede à Edgecomb para realizar o sonho de assistir a um filme antes de morrer. O escolhido foi “O Picolino” (Top Hat – “cartola”) de Mark Sandrich, 1935, com Fred Astaire e Ginger Rogers, eterna dupla de dançarinos dos musicais da época. Produzido pela RKO, foi indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Direção, Direção de Arte, Coreografia e Música (“Cheek to Cheek” de Irving Berlin e cantada por Astaire). O filme foi a segunda maior bilheteria do ano.
Com “O Picolino”, Coffey teve a chance de transcender, de “transfigurar-se”, de revelar sua natureza superior. Talvez tenha servido como menção onírica da ressurreição, da possibilidade de vida além da morte. Ou talvez tenha servido como metalinguagem que nos aponta para a nossa própria capacidade de transcendência. Ao seguir os passos de Coffey, somos levados a perceber que num filme, assim como num sonho, tudo é possível. Novamente a arte revela a sua natureza “religiosa”.
Curiosidades:
1. A “Ratolândia”, cidade ideal onde deveria ir ratinho Mr Gingles, representa o Paraíso. Veja que John Coffey diz que sonha com essa cidade e nela vê as meninas e o francês (Del) vivos.
2. O criminoso francês tem seus dedos quebrados, algo que é confirmado pela frase de Brutus (o guarda grandalhão) que diz: “eu ouvi quando os ossos quebraram”. Aparentemente essa frase parece solta no roteiro, mas talvez queira indicar que quebraram os ossos de Del assim como quebraram os ossos (esse ato chama-se crurifrágio) dos ladrões que estavam com Jesus na crucificação.
3. É interessante notar que o nome do francês é Edouard De La Croix (Eduardo “da Cruz”).
4. No fim do filme, quando Coffey assiste ao “Picolino”, ele ouve Astaire cantar “I’m heaven...” e diz logo em seguida: “Ora, não são anjos?” Nesse momento há um enquadramento de câmera que mostra Coffey com a luz do projetor acima de sua cabeça, como se parecesse glorificado. Na cadeira elétrica, antes de ser executado, Coffey, canta a mesma música do Picolino: “I’m heaven...”.

04/2003

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