sábado, 19 de maio de 2012

DONNIE DARKO






2001 (1h20min)

Direção - Richard Kelly

Jake Gyllenhaal, Maggie Gyllenhaal, Drew Barrymore, Noah Wyle, Jena Malone, Mary McDonnell, Patrick Swayze, Seth Rogen, Holmes Osborne, Daveigh Chase, Katharine Ross, Ashley Tisdale, James Duval.


Donnie Darko é um filme de referências, assim como “Matrix”, lançado dois anos antes. São puzzles que exigem que sejam assistidos mais de uma vez para serem montados. Ainda assim sobram muitas peças sem encaixar e, por isso mesmo, são tão abertos a múltiplas interpretações. Talvez essa seja uma das razões que explicam porque nunca me aventurei a escrever sobre “Matrix”; mas vou me arriscar a dizer algo sobre Darko, tentando não cair na superinterpretação.
Em primeiro lugar é preciso ressaltar: esse filme conseguiu chegar ao patarmar de um clássico ou Cult com baixo orçamento e filmado em apenas 28 dias. Richard Kelly, além disso, conseguiu fazer um roteiro bem amarrado e não ser seduzido pelo didatismo; duas proezas raras de se encontrar nos atuais filmes de Hollywood.
Adolescência
Movies-teen em geral tratam adolescentes como seres abobalhados, preguiçosos, baderneiros e extramamente simplistas na forma como encaram a vida. Não que Donnie Darko fuja das incongruências da idade, mas trata um adolescente com uma profundidade pouco vista no cinema. Abuso ao dizer que Darko é o personagem mais lúcido entre personagens perdidos num maniqueísmo de dar dó. Kelly chega a ser irônico ao criar uma “carola” moralista como Miss Farmer, que trata seus alunos justamente como uma fazendeira, e o Dr. Cunning, que divide o mundo em medo e amor. Igual dualismo simplório é visto nos adultos que ficam na dúvida em escolher na política entre candidatos conservadores e liberais.
Darko passa pelas contradições e problemas típicos dos adolescentes (melancolia, raiva, rebeldia, primeiro namoro, briga com os colegas de escola, empatia com professores e antipatia por outros) e, apesar de parecer fugir de sua responsabilidade em amadurecer, sabe, como qualquer outro adolescente, que o tempo está se esgotando e decisões precisam ser tomadas. A busca por sentido e identidade na vida de um adolescente aparece nesse filme à semelhança do que ocorre em outros filmes que protagonizam uma personagem como “Preciosa” ou “Alice no País das Maravilhas”.
Vários são os personagens adolescentes estereotipados: meninas “inocentes” que dançam sensualmente, meninos que brigam por nada, festas, bebidas, fortões e excluídos, como é o caso de Cherita, a gordinha que recebe de Darko um olhar de piedade.
Morte
A morte é possivelmente o tema obsessivo do filme e representada em diversos momentos. Vejamos:
1.      As canções da trilha sonora, várias delas de 1988, ano em que “o mundo vai acabar”, trazem em suas letras não só trechos que são visíveis no roteiro do filme como o tema do destino, intimamente ligado à morte e o tempo.
2.      Em termos filosóficos, a morte é tratada também pelo tema da solidão. Nesse caso, devemos suscitar, mas não explicar, o existencialismo de Sartre que elucidou o quanto estamos sós no mundo, abandonados em busca de sentido. A morte é o limite desse abandono existencial entre o sujeito e o mundo.
3.      Também é filosófico (eu diria um pouco esotérica) o conceito baseado na experiência da Sra Roberta Sparrow (a Vovó Morte) acerca do tempo no livro que ela escreveu: “A filosofia da viagem no tempo”. Aliás, ela corrobora com Sartre quando cochicha no ouvido de Darko: “Cada criatura na Terra morre sozinha”.
4.      Sem dúvida uma referência fundamental para entender o filme é o trabalho que a professora de literatura pede aos alunos baseado no livro de Graham Greene, “Os destruidores”. Ele foi escrito em 1954 e fala sobre adolescentes que destroem uma casa de 200 anos que sobreviveu a Blitz nazista (do alemão “relâmpago”); bombardeio que aconteceu na Grã-Bretanha entre setembro de 1940 e Maio de 1941. O plano dos adolescentes, liderado por um deles, era destruir a casa de dentro para fora e então demolir a estrutura que sobrasse no exterior. Darko interpreta corretamente, conforme fazem os críticos literários, que ao destruírem essa casa, estão ao mesmo tempo criando. Trata-se de uma clara referência sobre aquilo que ele mesmo iria fazer para mudar a história dos outros e de si mesmo. Ao inundar a escola (destruição), conhece sua namorada (criação); ao incendiar o anfiteatro do Dr. Cunning (destruição), ajuda a revelar a pedofilia do doutor falsidade (criação); e por fim, ao voltar no tempo e permitir que uma das turbinas da aeronave caia sobre seu quarto e morra (destruição), salva sua namorada e aproxima os personagens (criação). É a velha fórmula do ciclo da vida: a semente tem que morrer (destruição) para que possa brotar (criação). Adolescentes são assim.
5.      Só quando o filme termina é que ficamos sabendo que o coelho-monstro é na verdade uma fantasia usada por Frank (Frankenstein que ganhou vida pelas alucinações de Darko?) no Dia das Bruxas, dia do fim do mundo. O coelho, um animal que aparentemente invoca afetividade e pena, torna-se uma máscara assustadora, semelhante a uma caveira, uma caveira de morte. Inclusive, Darko, ao avistar o carro vermelho de Frank, quando ele e Gretchen, sua namorada, estão sendo atacados, diz que vem chegando o “nosso salvador”. Possivelmente uma alusão messiânica a morte de Darko e a salvação de Gretchen. Talvez isso estivesse em seus planos. Nesse caso, ele muda o destino.
6.      A própria Gretchen avisa seu fim trágico quando diz: “Acho que algumas pessoas já nascem com a tragédia no sangue.”
7.      Darko usa nesse dia uma fantasia de esqueleto, prenunciando seu sacrifício.
8.      O buraco de minhoca conduz Darko até uma pistola. Acredito que ele deveria ter usado a pistola para que o final trágico com sua namorada não acontecesse, mas ao escolher não usá-la, ele mudou o seu destino, à semelhança do que vemos no filme “Minority Report”.
9.      O close na espiral pintada na turbina do avião talvez signifique justamente o ciclo do tempo marcado pela vida e morte, ou a forma real como o tempo é percebido, ou seja, não só na sua identificação mais usual e linear de passado, presente e futuro, mas como passado que se repete no presente e permite saber o futuro. O tempo cíclico é a “máquina do tempo” dos ancestrais.
10.  Uma cena no cinema aparece o crepúsculo e um relógio, sinais e metáforas da morte.
11.  A “tentação” de Darko em fugir da morte é refletida nos letreiros do cinema em filmes como “The Evil Dead” (Uma Noite Alucinante) e “The Last Temptation of Christ” (A Última tentação de Cristo).
Ciência
Não podemos fixar um gênero apenas para esse filme, mas, uma coisa é certa, podemos considerá-lo em muitos momentos uma ficção científica. O mote é simples: situações extraordinárias são explicadas cientificamente:
1.      Darko quer modificar o destino e controlar a morte ao encontrar uma explicação científica sobre como viajar no tempo. Por isso a citação dos buracos de minhoca, a conversa sobre física quântica com seu professor e a referência a Stephen Hawking.
2.      Darko aconselha Gretchen a escrever sobre antissépticos para um trabalho acerca das maiores invenções da história que beneficiaram a humanidade.
3.      Miss Farmer carrega um livro sobre comportamento.
4.      Em um momento descontraído, Darko dá uma explicação científica para seus colegas da escola demonstrando porque os smurfs não podiam transar.
5.      Darko cita o filme “De Volta para o Futuro”, que está repleto de referências científicas sobre viajar no tempo e, principalmente, sobre o paradoxo temporal – problema que Darko resolve ficando em seu quarto esperando a morte.
6.      Darko e Gretchen fazem um trabalho para a escola com explicações científicas sobre “implantar” boas memórias na mente de bebês através de um par de óculos com imagens agradáveis. Descobrem, porém, que o passado não pode ser apagado da memória.
7.      Como o filme tem uma cronologia confusa e não é sincrônico, lembrando inclusive o filme “Amnésia”, que começa pelo fim, uma boa parte dessa diacronia é explicada por um Darko também confuso e doente.
8.      A professora de literatura diz a Darko sobre uma palavra, “cellar door” (traduzido como "porta de adega”, mas também poderia ser “porta do porão” ou “alçapão”). Trata-se de uma palavra considerada em inglês como “fono-estética”, ou seja, tida tanto por Edgar Allan Poe quanto por J. R. R. Tolkien como a mais bela palavra sonoramente falando. Darko a interpretou como sendo um portal do tempo. Em termos de referência, o filme parece nos remeter claramente à “Alice no País das Maravilhas”, que encontra um outro mundo quando entra em um buraco (o seu buraco de minhoca). Como Alice, Darko segue o seu coelho. Portais desse tipo são comuns nas mitologias e nas histórias de fantasia como em "O leão, o guarda-roupa e a feiticeira" de C. S. Lewis.
O mundo acaba, mas apenas o de Donnie Darko. Como Alice, que tem um coelho branco (“Matrix” também brinca com essa referência) que lhe aponta o tempo todo um relógio, como querendo apressar o amadurecimento da menina, Darko também tem um coelho pressionando-o porque o tempo está acabando e deve realizar o seu sacrifício de anti-herói. O coelho de Alice é eufemizado, diluído, domesticado; o coelho de Darko é monstruoso, contundente, selvagem. Seria a releitura da fábula de Alice em um adolescente dos tempos modernos, que pede não só o amadurecimento de seus adolescentes mas também a sua morte?