quinta-feira, 22 de maio de 2008

Abril Despedaçado: (Abril Despedaçado, Brasil, França, Suíça, 2001)
Duração: 105 min
Distribuidora: Lumiére
Produtoras: Bac Filmes, Dan Valley Film AG, Haut et Court, VideoFilmes, Videofilmes Produções Artísticas
Diretor: Walter Salles
Roteiristas: Karim Ainouz, Sérgio Machado, Walter Salles
Produtores: Lillian Birnbaum, Arthur Cohn, Jean Labadie, Mauricio Andrade Ramos, Carole Scotta, Marcelo Torres
Compositores: Ed Cortês, Antonio Pinto, Beto Villares
Fotógrafo: Walter Carvalho
Montagem: Isabelle Rathery
Elenco Principal
José Dumont: Pai
Rodrigo Santoro: Tonho
Rita Assemany: Mãe
Luiz Carlos Vasconcelos: Salustiano
Ravi Ramos Lacerda: Pacu
Flavia Marco Antonio: Clara
Everaldo Pontes: Velho cego
Othon Bastos: Participação especial


Um filme incomparável

Num desses dias sentei em frente ao meu aparelho de TV para “tirar o atraso” em relação a alguns filmes que ainda não tinha tido a oportunidade de assistir nos cinemas. Senti falta de conhecer as últimas produções brasileiras. De tanto ouvir comentários, o alvo foi fácil, encarei Abril Despedaçado de Walter Salles. Sabia que ele tinha feito Central do Brasil e pensei: acho difícil que Abril Despedaçado ultrapasse o sucesso de Central do Brasil. De fato, não ultrapassou. Mas só não ultrapassou o sucesso do anterior, isto é, os prêmios, bilheteria, fama. Já no quesito linguagem, tocou-me mais.
Alguns críticos afirmam que Abril Despedaçado é um “filme menor” em relação a Central do Brasil, e mais ainda quando comparado a outro mega-sucesso como Cidade de Deus. Mas, mesmo assim, senti-me mais atraído por Abril Despedaçado. Talvez porque nunca gostei muito do realismo seco de algumas produções cinematográficas, principalmente aquelas que se originam de uma literatura que se preza pelas estéticas da pobreza e da violência. Não. Não faço parte do grupo que gosta de dizer que essas estéticas servem apenas para vender, para transformarem a realidade brasileira em fetiche. Isso é avaliação de quem não sabe ainda para que serve o cinema, de gente que ainda não conseguiu se livrar de uma crítica ascética e ética em relação às artes. Apesar de Central do Brasil e Cidade de Deus terem expressado um setor da realidade brasileira de forma singular, Abril Despedaçado exige maior reflexão, dá ao espectador a sensação de que está diante de uma parábola, de uma história universal e não local. Mas acho que aí está o “charme” do filme, ou seja, permite uma leitura aberta e rica. Como certa vez afirmou Arnaldo Jabor, cada filme tem o seu próprio espaço, e a linguagem de um filme não necessariamente deve ser a mesma em comparação com outro.

A adaptação

É Abril de 1910, e uma camisa balança ao vento esperando que uma mancha de sangue amarele, pois quando isso acontecer, é porque chegou a hora da vingança. Tonho é o filho do meio, e agora o mais velho da família Breves, que constantemente o constrange a vingar o irmão morto, vítima de uma luta ancestral entre famílias inimigas. Tem 20 anos, e sabe que se cumprir sua missão, será perseguido pela família rival, exatamente conforme o código de ética estabelecido há muito tempo. Pacu (Ravi Ramos Lacerda), seu irmão mais novo, é o único que desaprova a lógica absurda da violência. Pensa que a sua imaginação de criança pode acabar com essa guerra. No final é exatamente isso o que acontece.
Abril Despedaçado foi inspirado na obra literária homônima do escritor albanês Ismail Kadaré. Nela o escritor revela as histórias de vendeta de seu país, e que impressionam pelas semelhanças que possuem com as histórias de vingança encontradas no começo do século XX no sertão brasileiro. O próprio Salles fez um longo trabalho de pesquisa sobre as características das guerras entre famílias no Brasil, que formam o pano de fundo onde Tonho (Rodrigo Santoro) deve tomar sua decisão. Tendo que vingar o irmão mais velho, logo se tornará o próximo alvo de vingança da família adversária. Como uma regra que jamais pode ser quebrada, vê-se a angústia misturada à resignação por parte das duas famílias que protagonizam o filme.

Um Auto de Páscoa?

No dia em que assisti ao filme, fiquei ruminando as cenas, a história, as impressões que tive. Não pude evitar o “insight” e passei e fazer uma hermenêutica pascal, diga-se logo, bem diferente daquilo que o filme realmente quis dizer, quis transmitir. Evidentemente o filme não narra uma história sobre a Páscoa, sobre o Antigo Testamento ou seja lá o que for do cristianismo. Não foi isso o que Kadaré, Salles ou os roteiristas pensaram quando executaram Abril Despedaçado. Mas, depois que fiz essa leitura, fiquei surpreso quando, ao ler uma resenha do filme, o próprio Walter Salles afirma que optou por um filme que tivesse uma qualidade fabular, que não precisasse estar fincado num espaço geográfico totalmente realista.
Isso significa que Abril Despedaçado, assim como qualquer obra de arte, não está fechado para uma leitura plural, dialógica, imaginária. Pelo contrário, conforme nos aponta Umberto Eco, toda obra é uma obra aberta, toda obra permite um apossar-se por parte do receptor e por parte do mundo que já não mais pertence ao autor. Logo, mesmo sabendo que o filme contém uma história específica, nele também existe uma reserva muito grande de “leituras”, de interpretações que fazem com que ele seja enriquecido e torne-se uma obra que transcende o tempo e o espaço.
Nesse caso, minha “segunda chance” não estava tão perdida assim, e a mensagem é simples: Pacu, assim como Cristo em sua paixão pascal, de forma arquetípica, conquistou o fim de um ritual de sacrifícios e vinganças exigidas por uma lei imutável e perversa.
Pacu morreu no lugar do irmão e pôs fim a um processo que parecia interminável. Como Cristo, substituiu todos os sacrifícios, todas as mortes e toda a lei de vingança que exigia sangue. Como num Auto de Páscoa, quebrou a tradição burra, circular, que parecia nunca acabar. Tradição, tempo repetitivo e eterno retorno que foi formidavelmente simbolizado pela rigidez do movimento da bolandeira (máquina para moer a cana), onde nem os bois agüentaram. Ora, e diante da ética tradicional, da conduta impensada, não agimos como gado? “A gente é que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar”, diz Pacu. É a imobilidade das leis misturada ao movimento repetitivo das vidas, só rompido com a morte do menino, que vai parar no mar, num dia de chuva, lugar e fenômeno quase impossíveis no sertão, no deserto, só para confirmar o oráculo de Antonio Conselheiro: “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”; ou para autenticar o milagre do “Deus ex machina” de Aristóteles.
Como disse Isaías, o profeta: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz...”.
Aliás, será que na Albânia, assim como no Brasil, a Páscoa é celebrada no mês de Abril? Se não for, pelo menos na fábula é.
Boa Páscoa!
04/2003

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