“Deus é brasileiro” (Brasil, 2002, 120 min.)
Com Antonio Fagundes, Paloma Duarte e Wagner Moura
Distr. Columbia Pictures
Inaugurando as opiniões, críticas e reflexões sobre os diversos filmes que assisti e tenho assistido nos últimos anos, inclusive como fruto de vivências em sala de aula com meus alunos, faço aqui a minha projeção daquele que considero um dos melhores filmes da chamada “retomada” do cinema brasileiro. Trata-se de Deus é Brasileiro, 15º filme de Cacá Diegues, baseado no conto homônimo “Deus é brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro, que pode ser encontrado no livro "Já podeis da pátria filhos e outras histórias".
Filme de beleza fotográfica impecável e trilha sonora revelando o que temos de melhor em nossa cultura, mostra como o cinema brasileiro superou a sua fase pornográfica. Mas é só isso? Parece que é! Pelo menos essa é a opinião da maioria das pessoas com quem tenho conversado sobre o filme. Assistentes passíveis, herdeiros da preguiça televisiva, apenas engoliram num ato pantagruélico as cenas que desfilavam diante de si. Espectadores da telinha, não conseguiram mais do que uma interpretação “literal” do filme e, torcendo o nariz, interpelaram: Mas essa é a história? Que chocha!
Não, definitivamente Deus é brasileiro não é só uma história debochada de Deus e nem uma visão escrachada da realidade brasileira. É claro que a ironia e o uso dos estereótipos estão presentes, mas não de forma barata, banal, mas de forma inteligente e metafórica. Aliás, se há uma coisa que é retratada com certa fidelidade no filme é a realidade brasileira: paradoxalmente bela e feia, singela e grosseira. E é nessa realidade que todos os clichês sobre Deus no Brasil são retomados, usados como uma espécie de moldura que enquadra todas as cenas.
Mas será mesmo Deus brasileiro? Talvez seja essa a pergunta que o filme tenta responder até o seu fim. E é a partir dessa pergunta que faço aqui a minha leitura pessoal. Digo novamente: é a “minha leitura” e não a do diretor, de João Ubaldo ou dos críticos que me antecederam.
O primeiro golpe que o filme desfere é sobre o local onde “Deus mora”, o céu. Lugar burocrático, dominado pelas religiões mediadoras de Deus (veja um indivíduo tratado ao telefone público com as mesmas formalidades que são utilizadas nos serviços telefônicos das grandes empresas), cheio de filas, horários, pressa, relembrando as metrópoles desumanizadas. E o céu é azul! Mas não se engane, as cores são frias, geladas, lembrando um Deus europeu. Pelo menos nesse começo podemos perguntar: Será Deus europeu? Será ele um anglo-saxão sério, grave, não dado às brincadeiras?
Se Deus é europeu, não podemos afirmar com certeza, mas que ele “torna-se” brasileiro isso fica claro quando chega aqui ao Brasil. Brasil de cores vivas e quentes, transpira o desejo e a vontade de transgredir. Será a cor do inferno? As tonalidades vermelha e laranja predominam até quando é focado o verde. O caminhão roubado é vermelho, a camiseta de Wagner Moura (ator que brilha mais que Fagundes) é da cor laranja com detalhes vermelhos e a camisola de Paloma Duarte no fim do filme é estampada com grandes rosas vermelhas. Mero acaso?
Apesar do “vermelho-Brasil” Deus está lá, “azuzim”, igual ao céu de onde veio: camisa xadrez azul, calça azul, cabelos brancos e um guarda-chuva. Guarda-chuva? Em pleno sertão brasileiro onde não chove? Por isso talvez o guarda-chuva vire guarda-sol no restante da narrativa.
Porém, isso é só o começo da “conversão” divina, que aos poucos ganha o contorno transgressor da ética do jeitinho: não interfere nas trapaças, viaja em um caminhão roubado, ganha dinheiro do povo “travestindo-se” de apresentadora, faz mágicas. Ou seja, para Deus ser brasileiro ele precisa primeiro enculturar-se, pensar como um brasileiro e agir como um brasileiro. No mínimo, ele deve saber quais as expectativas que qualquer brasileiro médio e cristão tem dele. Uma crítica contra o cristianismo institucionalizado, que nada entende sobre a religiosidade popular?
O Deus “totalmente outro” de Karl Barth, teólogo suíço, torna-se o Deus humano, próximo, mas tão perto que é impossível não cair na tentação da indiferença ou do interesse. Afinal, para que serve Deus se não para realizar milagres? Diante da nossa inclinação à passividade, Deus é brasileiro e o Brasil é o país do futuro! Nada mais enganoso.
Em meio a esse desenrolar de um Deus aprendiz, aparecem os estereótipos. Cada um deles é um golpe nas concepções equivocadas que geralmente temos a respeito de algumas personagens religiosas. O padre, que se espera seja casto, tem relações sexuais com uma freira. O pastor, de onde se imagina encontrar lisura e honestidade crente, encanta Deus com seu discurso triunfalista. Resultado: Até Deus se rende a “dar todo o seu dinheiro”. O santo, de quem pressupõe um dedicado teísmo, é ateu. Mas será que é preciso ser santo para ser bom? Ou será preciso ser bom para ser santo? Que Jesus nos diga novamente com a parábola do bom samaritano: de quem se esperava o pior, foi quem deu o melhor.
O fio condutor que perpassa todo o filme é a narrativa da criação, que é revisitada por Deus no “Paraíso-Brasil”. Deus revê sua criação em detalhes: águas, terra, céu, árvores, aves (chega a imitar o canto de algumas delas) e os dias, que passam conforme “lhe dá na telha”. “E viu Deus que isto era bom”. Tão bom que nas últimas cenas, antes de desaparecer, num ato simbólico que repete a “auto-avaliação divina sobre a criação”, Deus lança ao rio o seu caderninho de anotações, que por toda a história utilizou para anotar as possíveis “reformas” daquelas coisas que pretendia mudar na terra. Não foi preciso, pois “viu que tudo era bom”.
Mas e a missão de encontrar um santo brasileiro para que pudesse passar as férias entre estrelas e galáxias? À resposta cabe uma outra pergunta: Para que um santo substituto depois que Deus se converte à brasilidade? Muito além de um burocrático santo que cuide de tudo, Deus redescobre o paraíso perdido. Mais: depois que toda a criação é “revista e atualizada”, Deus prepara uma situação para que o primeiro casal, Adão e Eva, seja novamente encarnado pelo casal que está no barco, o mesmo que tomou no início de sua viagem. “E criou Deus macho e fêmea”.
Por fim, é claro, de nada adiantaria criar macho e fêmea sem desejo, sem transgressão. Por isso “Deus plantou uma árvore no jardim”. Não uma macieira ou um pinheiro, mas uma pitangueira. Será esse o sinal de que o Deus estrangeiro foi absorvido, devorado antropofagicamente e devolvido como um humano, popular e “pecador” e, além de tudo, brasileiro?
Não tenho dúvidas, esse filme participa do melhor que temos das narrativas de resistência e ironia da tradição latino-americana e brasileira. Assim como acontece com Auto da Compadecida, aqui a religiosidade popular é reverenciada contra a religiosidade da burguesia dominadora. Semelhante a um Aleijadinho ou a um Kondori, João Ubaldo e Cacá Diegues revelam-se artífices de uma linguagem irônica, da subversão inteligente expressa na religiosidade dos “vencidos”.
Se alguém quer saber se Deus é brasileiro, precisa antes “nascer de novo”, largar mão de seus paradigmas enrijecidos e deixar que a cultura brasileira sobre Deus surja na sua mais pura intertextualidade, ou permanecerá preso às cadeias do sistema da danação eterna.
Sim, Deus é brasileiro brincou com os valores religiosos, mas foi uma séria brincadeira.
03/2003
Com Antonio Fagundes, Paloma Duarte e Wagner Moura
Distr. Columbia Pictures
Inaugurando as opiniões, críticas e reflexões sobre os diversos filmes que assisti e tenho assistido nos últimos anos, inclusive como fruto de vivências em sala de aula com meus alunos, faço aqui a minha projeção daquele que considero um dos melhores filmes da chamada “retomada” do cinema brasileiro. Trata-se de Deus é Brasileiro, 15º filme de Cacá Diegues, baseado no conto homônimo “Deus é brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro, que pode ser encontrado no livro "Já podeis da pátria filhos e outras histórias".
Filme de beleza fotográfica impecável e trilha sonora revelando o que temos de melhor em nossa cultura, mostra como o cinema brasileiro superou a sua fase pornográfica. Mas é só isso? Parece que é! Pelo menos essa é a opinião da maioria das pessoas com quem tenho conversado sobre o filme. Assistentes passíveis, herdeiros da preguiça televisiva, apenas engoliram num ato pantagruélico as cenas que desfilavam diante de si. Espectadores da telinha, não conseguiram mais do que uma interpretação “literal” do filme e, torcendo o nariz, interpelaram: Mas essa é a história? Que chocha!
Não, definitivamente Deus é brasileiro não é só uma história debochada de Deus e nem uma visão escrachada da realidade brasileira. É claro que a ironia e o uso dos estereótipos estão presentes, mas não de forma barata, banal, mas de forma inteligente e metafórica. Aliás, se há uma coisa que é retratada com certa fidelidade no filme é a realidade brasileira: paradoxalmente bela e feia, singela e grosseira. E é nessa realidade que todos os clichês sobre Deus no Brasil são retomados, usados como uma espécie de moldura que enquadra todas as cenas.
Mas será mesmo Deus brasileiro? Talvez seja essa a pergunta que o filme tenta responder até o seu fim. E é a partir dessa pergunta que faço aqui a minha leitura pessoal. Digo novamente: é a “minha leitura” e não a do diretor, de João Ubaldo ou dos críticos que me antecederam.
O primeiro golpe que o filme desfere é sobre o local onde “Deus mora”, o céu. Lugar burocrático, dominado pelas religiões mediadoras de Deus (veja um indivíduo tratado ao telefone público com as mesmas formalidades que são utilizadas nos serviços telefônicos das grandes empresas), cheio de filas, horários, pressa, relembrando as metrópoles desumanizadas. E o céu é azul! Mas não se engane, as cores são frias, geladas, lembrando um Deus europeu. Pelo menos nesse começo podemos perguntar: Será Deus europeu? Será ele um anglo-saxão sério, grave, não dado às brincadeiras?
Se Deus é europeu, não podemos afirmar com certeza, mas que ele “torna-se” brasileiro isso fica claro quando chega aqui ao Brasil. Brasil de cores vivas e quentes, transpira o desejo e a vontade de transgredir. Será a cor do inferno? As tonalidades vermelha e laranja predominam até quando é focado o verde. O caminhão roubado é vermelho, a camiseta de Wagner Moura (ator que brilha mais que Fagundes) é da cor laranja com detalhes vermelhos e a camisola de Paloma Duarte no fim do filme é estampada com grandes rosas vermelhas. Mero acaso?
Apesar do “vermelho-Brasil” Deus está lá, “azuzim”, igual ao céu de onde veio: camisa xadrez azul, calça azul, cabelos brancos e um guarda-chuva. Guarda-chuva? Em pleno sertão brasileiro onde não chove? Por isso talvez o guarda-chuva vire guarda-sol no restante da narrativa.
Porém, isso é só o começo da “conversão” divina, que aos poucos ganha o contorno transgressor da ética do jeitinho: não interfere nas trapaças, viaja em um caminhão roubado, ganha dinheiro do povo “travestindo-se” de apresentadora, faz mágicas. Ou seja, para Deus ser brasileiro ele precisa primeiro enculturar-se, pensar como um brasileiro e agir como um brasileiro. No mínimo, ele deve saber quais as expectativas que qualquer brasileiro médio e cristão tem dele. Uma crítica contra o cristianismo institucionalizado, que nada entende sobre a religiosidade popular?
O Deus “totalmente outro” de Karl Barth, teólogo suíço, torna-se o Deus humano, próximo, mas tão perto que é impossível não cair na tentação da indiferença ou do interesse. Afinal, para que serve Deus se não para realizar milagres? Diante da nossa inclinação à passividade, Deus é brasileiro e o Brasil é o país do futuro! Nada mais enganoso.
Em meio a esse desenrolar de um Deus aprendiz, aparecem os estereótipos. Cada um deles é um golpe nas concepções equivocadas que geralmente temos a respeito de algumas personagens religiosas. O padre, que se espera seja casto, tem relações sexuais com uma freira. O pastor, de onde se imagina encontrar lisura e honestidade crente, encanta Deus com seu discurso triunfalista. Resultado: Até Deus se rende a “dar todo o seu dinheiro”. O santo, de quem pressupõe um dedicado teísmo, é ateu. Mas será que é preciso ser santo para ser bom? Ou será preciso ser bom para ser santo? Que Jesus nos diga novamente com a parábola do bom samaritano: de quem se esperava o pior, foi quem deu o melhor.
O fio condutor que perpassa todo o filme é a narrativa da criação, que é revisitada por Deus no “Paraíso-Brasil”. Deus revê sua criação em detalhes: águas, terra, céu, árvores, aves (chega a imitar o canto de algumas delas) e os dias, que passam conforme “lhe dá na telha”. “E viu Deus que isto era bom”. Tão bom que nas últimas cenas, antes de desaparecer, num ato simbólico que repete a “auto-avaliação divina sobre a criação”, Deus lança ao rio o seu caderninho de anotações, que por toda a história utilizou para anotar as possíveis “reformas” daquelas coisas que pretendia mudar na terra. Não foi preciso, pois “viu que tudo era bom”.
Mas e a missão de encontrar um santo brasileiro para que pudesse passar as férias entre estrelas e galáxias? À resposta cabe uma outra pergunta: Para que um santo substituto depois que Deus se converte à brasilidade? Muito além de um burocrático santo que cuide de tudo, Deus redescobre o paraíso perdido. Mais: depois que toda a criação é “revista e atualizada”, Deus prepara uma situação para que o primeiro casal, Adão e Eva, seja novamente encarnado pelo casal que está no barco, o mesmo que tomou no início de sua viagem. “E criou Deus macho e fêmea”.
Por fim, é claro, de nada adiantaria criar macho e fêmea sem desejo, sem transgressão. Por isso “Deus plantou uma árvore no jardim”. Não uma macieira ou um pinheiro, mas uma pitangueira. Será esse o sinal de que o Deus estrangeiro foi absorvido, devorado antropofagicamente e devolvido como um humano, popular e “pecador” e, além de tudo, brasileiro?
Não tenho dúvidas, esse filme participa do melhor que temos das narrativas de resistência e ironia da tradição latino-americana e brasileira. Assim como acontece com Auto da Compadecida, aqui a religiosidade popular é reverenciada contra a religiosidade da burguesia dominadora. Semelhante a um Aleijadinho ou a um Kondori, João Ubaldo e Cacá Diegues revelam-se artífices de uma linguagem irônica, da subversão inteligente expressa na religiosidade dos “vencidos”.
Se alguém quer saber se Deus é brasileiro, precisa antes “nascer de novo”, largar mão de seus paradigmas enrijecidos e deixar que a cultura brasileira sobre Deus surja na sua mais pura intertextualidade, ou permanecerá preso às cadeias do sistema da danação eterna.
Sim, Deus é brasileiro brincou com os valores religiosos, mas foi uma séria brincadeira.
03/2003
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