quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Hary Potter e as palavras mágicas


Hermione é uma das primeiras a pronunciar uma palavra mágica na série Harry Potter. Depois que Pirraça delata a presença de Rony, Hermione e Potter fora da cama, e com Filch em seu encalço, a necessidade aperta e precisam de uma saída: “Ouviram passos, Filch correndo a toda em direção aos gritos de Pirraça. – Ah, sai da frente – Hermione resmungou aborrecida. Agarrando a varinha de Harry, bateu na fechadura e murmurou: - Alorromora! A fechadura deu um estalo e a porta se abriu...” (Harry Potter e a pedra filosofal). Como diz este primeiro livro, o mundo de Harry é o mundo das “pragas e contrapragas”.

A crença de que as palavras podem ser mágicas não está só no espaço da fantasia, ela já fez parte do universo do homem antigo. Em épocas remotas havia uma clara relação entre o mundo e as palavras, e isso permaneceu assim pelo menos até o fim da Idade Média. Não é como hoje em que podemos nomear ou conceituar as coisas como elas nos parecem ou interpretar os eventos conforme nossa vontade. Em tempos passados as palavras se confundiam de forma exata com os objetos, portanto, palavras e objetos tinham uma equivalência que não conseguimos conceber ou entender nos dias modernos. O dito definia o objeto e o objeto era o dito. A tradição comandava o que se dizia e o que se interpretava. O mito era a verdade pura e jamais questionado, era um reflexo da realidade.

Cabia aos homens “escolhidos” pelos deuses a tarefa de nomear as coisas pela primeira vez. Tais homens eram sacerdotes, xamãs, feiticeiros, videntes, reis-sacerdotes ou heróis civilizadores. Em contato com a divindade, tinham um conhecimento que extrapolava o conhecimento dos demais mortais. Por isso, além de dar nomes às coisas, animais e seres, também dominavam a arte das palavras mágicas, encantadas.

A briga “objeto-linguagem” vai longe. Em Platão, em um de seus diálogos, chamado de Crátilo ou sobre a justeza dos nomes, um lado defende que as palavras são exatas às coisas e, o outro lado, defende que as palavras apenas representam as coisas por convenção. O problema continua e reaparece com intensidade na Idade Média com a picuinha chamada de “o nome da rosa”. Se você se lembrou do livro ou do filme, é porque eles são baseados nesse problema. Umberto Eco deu vida e romanceou uma das grandes questões da filosofia: a rosa tem o seu nome porque nós é que damos isso a ela ou ela é que nos transmite o que ela é? Se vivêssemos naquela época, dependendo da resposta, seríamos chamados de nominalistas, no primeiro caso, ou realistas, no segundo caso.

Não por acaso as palavras são tão ligadas ao conhecimento e o conhecimento à imagem do olho que tudo vê. A ideia de um terceiro olho em algumas culturas aparece justamente para indicar que o conhecimento das coisas nem sempre se dá apenas pela razão formal. É o olho onisciente da divindade, que sabe todas as coisas de antemão e por isso pode dizê-las antes.
Mesmo a razão moderna preserva essa noção quando afirma que é necessário “demonstrar” para se ter certeza da verdade. Demonstrar por palavras é sinônimo de mostrar, de “dar a ver”. Ver por palavras significa lançar luzes onde estava escuro, onde imperava a ignorância. E não é que o Iluminismo do século XVIII adota essa bandeira?

É curioso que em muitos mitos antigos o fogo e a luz são intimamente ligados ao conhecimento. No mito de Prometeu o fogo de Zeus é roubado e dado aos homens, que prepara o terreno para a sua queda, porque agora eles sabem. No mito moral de Gênesis, Adão e Eva comem do fruto da árvore do “conhecimento do bem e do mal” e também caem. As palavras trazem o conhecimento, mas, com ele, o poder, e o poder leva à construção e á destruição. Conhecer é poder. Talvez por isso nas histórias de Harry Potter é necessária uma escola de magia, pois é lá que o conhecimento se liga ao encantamento.

No evangelho de João a palavra é associada à luz que, por sua vez, teve influência da mitologia grega, que acreditava que o “logos” foi a “palavra” organizadora do caos primordial. Concepção semelhante encontramos em algumas lendas egípcias. Nos textos upanixádicos a palavra está ligada à luz e algumas vezes ao fogo. Ainda no Gênesis a palavra de Javé é “fiat lux” (faça-se a luz). A palavra inicial se liga à luz inicial. Na etimologia indo-européia “aquilo que é luz” é a mesma que a do termo que significa “falar”. Carl Jung aponta que existe uma semelhança entre o radical sânscrito “svan”, que significa “murmurar”, com a palavra “schwan” (“swan” em inglês), que significa “cisne”. O cisne é um símbolo mítico que muitas vezes é representado como uma ave solar, ligando assim a palavra (ou murmúrio) à luz. Aliás, eu conheço bem a figura heráldica do cisne, pois o meu sobrenome “carvalho”, que tem origem judaico-portuguesa, é simbolizado por um cisne com um sol no peito.

A fusão de palavra e luz (conhecimento) é símbolo em muitas culturas e dá a ideia de onipotência. Odin, deus principal do panteão nórdico, é um Varuna caolho e onipotente entre os germanos e age pela magia das runas. Até o nome Varuna tem o mesmo vocábulo “runa” (wr-u-nâ). Em filandês “runo” significa “canto épico”, em leto “runat” tem o sentido de “falar” e em irlandês, “rûn” significa “segredo”. O próprio Odin às vezes é chamado de “deus do bem dizer”. O “flamen” latino (Flamel?) significa “fórmula sagrada”.

Na cosmogonia indu, ou seja, no mito de origem do mundo, o Brahma se manifesta com um nome sagrado designado pela palavra “sphota”. Essa palavra deve ter vindo de “sphout”, que significa “rebentar”, e do adjetivo “sphonta”, que quer dizer “aberto”, “evidenciado”. Logo, o “sphota” de Brahma pode ser traduzido como “estourar bruscamente como um grito”. Em outras palavras, Brahma cria o universo por sua palavra, ou o universo é a própria palavra, isto é, um grito que explode em um universo.

Também na cultura indu é ensinada a técnica de domínio dos mantras, palavras ou fórmulas mágicas para domar o universo. Para os bambara da África, por exemplo, as palavras pronunciadas pelos chefes se transformam em um bom “nyama” (força), que penetra no corpo da divindade pelos olhos e pelas orelhas. Com más palavras esses feiticeiros podem até provocar a morte. Para culturas como essa, assim como na pré-modernidade, existe uma identidade irrefutável entre realidade e palavra proferida.

Na legislação de Israel, encontrada no Antigo Testamento, especificamente no livro do Deuteronômio, existe uma série de proibições quanto ao uso de adivinhos, feiticeiros ou consultas de mortos. Na lista temos o adivinho, que era aquele que procurava discernir a vontade dos deuses; o prognosticador, que na raiz árabe, é um termo semelhante a “murmurar” ou “sussurrar” fórmulas mágicas de encantamento; o agoureiro, que se refere a uma adivinhação utilizando um copo com água; o feiticeiro, que é um termo que tem semelhança com a frase “cortar em pedaços” e pode significar alguém que cortava ervas em pedaços e fervia com propósitos mágicos; o encantador, que significa “alguém que dá nós”, que tem o poder de prender pessoas por um “laço” a um encantamento; por fim o mágico, em que o termo tem raiz no verbo “yada” em hebraico, que pode ser traduzido como “conhecer”, significando que o mágico consultava apenas espíritos que conhecia.

Até a Idade Média, e atualmente apenas nas Igrejas Católicas Romanas Ortodoxas, as missas eram celebradas em latim por causa da mística das palavras. Aliás, o latim era tanto a linguagem dos místicos esotéricos, como os alquimistas e sociedades secretas, como também foi a linguagem oficial da teologia e da ciência em desenvolvimento naquela época.

Enfim, no mundo antigo as palavras habitavam o mundo da realidade metafísica que, se bem ditas, se corretamente pronunciadas, podiam se tornar em realidade física.

Mande comentários para esse texto indicando em que outros pontos da história de Harry Potter aparecem palavras mágicas e suas possíveis traduções. A próxima parte será Harry Potter e as varinhas mágicas. Por que as palavras mágicas pronunciadas pelos bruxos precisam vir acompanhadas de um movimento com uma varinha mágica?