sexta-feira, 23 de maio de 2008

A Paixão de Cristo

A Paixão de Cristo(The Passion of the Christ , EUA, 2004)

Gênero: Drama
Tempo de Duração: 126 minutos
Estúdio: Icon Productions / Marquis Films Ltd.Distribuição: 20th Century Fox / Icon Entertainment International
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Mel Gibson e Benedict Fitzgerald
Produção: Brce Davey, Mel Gibson e Stephen McEveety
Música: John Debney
Fotografia: Caleb Deschanel
Figurino: Maurizio Millenotti
Efeitos Especiais: Keith Vanderlaan's Captive Audience Productions
Elenco:James Caviezel (Jesus Cristo)
Maia Morgenstern (Maria)
Monica Bellucci (Maria Madalena)
Hristo Jivkov (João)
Hristo Shopov (Pôncio Pilatus)
Rosalinda Celentano (Satã)
Francesco Cabras (Gesmas)
Claudia Gerini (Esposa de Pilatus)
Sergio Rubini (Dismas)
Danilo Maria Valli (Lázaro)
Matti Sbraglia (Caifás)


Quid est veritas?

Passados os ânimos e a catarse coletiva que o filme de Gibson provocou, especialmente por parte dos que viram nele uma afronta aos judeus, ou aqueles que viram nele um sinal razoável sobre o fim dos tempos e a parousia do Cristo, eu mesmo, já contaminado, não consigo ficar alheio de dar minha opinião sobre as sandices que disseram sobre a película.
Em primeiro lugar, não entendo a razão de se insistir tanto sobre o anti-semitismo do filme. Basta lembrar que o cristianismo sempre manteve uma tradição anti-semita em seu seio, e de certa forma, foi isso que o levou a se diferenciar e sobreviver no primeiro século diante do judaísmo. Essa marca é tão profunda que não há na história século em que o cristianismo não tenha utilizado uma boa pitada da culpabilidade judaica pela morte de Cristo como lente para a leitura da Bíblia. O que Gibson fez nada mais foi do que repetir aquilo que ele e todos nós, hipócritas, aprendemos desde cedo com o nosso passado ocidental.
Tudo isso não significa que o olhar para o outro deva chegar aos patamares do ódio e da guerra, como aconteceu algumas vezes, mas exigir que um filme sobre a narrativa da paixão de Cristo a partir da tradição católica seja neutro, é ignorar a história e o significado de uma obra de arte, principalmente quando se trata de uma ficção. Aliás, o tema da ficção sozinho já traz grandes dificuldades para os críticos. Que o diga Luiz Felipe Pondé, em seu barroco artigo: A teologia de Pôncio Pilatos (“Mais!”, Folha de São Paulo, 28/03/2004). Nele o autor questiona: O que é a verdade? Ou na boca de Pôncio Pilatos: “Veritas? Quid est veritas?” Será que o filme realmente trata de questões históricas ou é apenas uma ficção? Para Pondé, em suas próprias palavras, “o filme não é uma peça histórica, mas uma meditação religiosa acerca da Paixão na era da reprodutibilidade técnica.” Ele ainda acrescenta: “Anti-semitismo no cristianismo é real e perigoso, mas é mais complexo que a idéia de que experimentar esteticamente a Paixão seja um discurso que força o ódio judeu.” Paranóias à parte, o público relaxou e chorou.
Em segundo lugar, não com menos ignorância, apareceram os profetas apocalípticos de plantão. É incrível como em fim de milênio e início de outro algumas pessoas (inacreditável é a quantidade delas) sentem-se autorizadas a falar sobre os sinais dos tempos. Numa euforia desmedida, ouvi um sem número de sujeitos dizerem que Gibson fez um filme evangelizador que finalmente prepararia a volta de Cristo. Isso não soa muito diferente da tradição anti-semita, pois o mesmo cristianismo que a preservou, também guarda a sua tradição apocalíptica e chafurda, desde séculos idos, sinais nos eventos históricos para a produção de sua escatologia. Possivelmente ainda seja animada pelas interpretações de Agostinho que dominavam os fins do ano 1000, ou pelas de Lutero, que acreditava que Cristo não demoraria mais que 100 anos para retornar. Ou seja, quando esse cristianismo não lê a Bíblia pela história, no caso do anti-semitismo, lê a história pela Bíblia, no caso da escatologia. Pois é, ler também é um ato político.
O que me espantou, no entanto, e que eu jamais imaginaria, é como a ficção de Gibson, com uma história tão manjada como a de Cristo, conseguiu desencadear o mesmo imaginário escatológico de filmes como Matrix, Blade Runner, I.A.-Inteligência Artificial ou Minority Report, todos filmes enquadrados numa utopia (ou distopia) longínqua. É de se pensar: por que tanta agitação em águas que logo se aquietarão? É só mais um filme dentre tantos, que logo será esquecido. Ou melhor, lembrado apenas por ser uma obra de arte. O que já é muito.
Pensando bem, já era de se esperar reações desse tipo, afinal, os artistas e suas obras de arte funcionam como uma espécie de bode expiatório para determinados grupos da sociedade, e acabam, mesmo sem querer, tornando-se catalisadores das ansiedades e neuroses de muita gente. Como bem disse Pichon-Rivière (O processo de criação):
"Esse emergente (objeto estético novo e original) com sua significação e linguagem próprias (...) pode desencadear no público reações hostis voltadas para a destruição do objeto estético (obra de arte), ou para a destruição simbólica do artista por meio de uma crítica destrutiva na qual, empregando uma linguagem especializada, o crítico denuncia o caráter destrutivo da obra, atribuindo ao artista uma intencionalidade específica. O crítico assume o papel de porta-voz do grupo social. Ou seja, o artista, como toda pessoa de nossa época, tem de abordar os problemas que se colocam para qualquer um de seus semelhantes, mas com a diferença de que ele se antecipa e, como ser antecipado, são lhe atribuídas características de um 'agente de mudanças', situação que favorece o deslocamento para ele de todos os ressentimentos, fracassos, medos, sentimentos de solidão e incerteza dos demais, como se fosse o porta-voz de tudo o que está subjacente e ainda não emergiu."

A veritas de Gibson

Para além da simpatia e da antipatia que Gibson provocou, carregando a pecha de bode expiatório, qual será a verdade que motivou o diretor a filmar a narrativa do Cristo? O que levou um ator acostumado às grandes produções da pancadaria iluminar a tela com um personagem que não ousa revidar? Lançado ao estrelato pelo heroísmo violento (Mad Max) e, no auge da carreira, laureado com vários Oscar pelo mesmo tema (Coração Valente), o que teria impulsionado Mel Gibson a filmar um herói que vence sem dar um soco sequer?
Alguns dizem que a razão foi uma súbita conversão do ator que, envolvido com as drogas e a fama, resolveu dar um jeito na vida. Outros afirmam que ele queria mostrar o seu lado religioso como católico romano fervoroso e ultra-ortodoxo. Mas um punhado de gente jura que o que ele queria mesmo era enganar o incauto telespectador evangélico com artimanhas satânicas que sobrepunham a figura de Maria à de Jesus.
Desconfio de todas essas afirmações. São pautadas por uma boa dose de romantismo e outra de misticismo. Na realidade, penso que a “veritas”, isto é, a verdade de Gibson, além daquela comercial, é claro, tenha nascido de duas intuições. A primeira foi para confirmar o que há muito tempo sabem os assistentes de TV e cinema: um herói, por mais que apanhe, sempre vence no final. A segunda foi para confirmar o que Gibson descobriu como diretor: o “medo” provocado por uma experiência com o sagrado é o meio mais eficiente para converter alguém a algum credo religioso.
O mito do herói não precisa de pistas, a cultura ocidental está imersa nele e poucas narrativas o expressam tão bem quanto a que funda o cristianismo. Cristo é um herói como qualquer outro no que se refere à sua trajetória: nasce pobre e injustiçado, aprende a usar seus poderes, desenvolve esses poderes para lutar contra a injustiça e, quando pensamos que ele irá vencer, é preso, torturado e morto. Mas qual não é a melhor parte, o recheio, senão que o herói retorna e, vencendo a injustiça, restaura todas as coisas? Não será isso que fez o sucesso nas bilheterias de filmes como as trilogias Matrix e Senhor dos Anéis? Não é de hoje que a indústria cinematográfica aprendeu a fazer uso da apocatástasis (a restauração de tudo no final da trajetória do herói), isso já vem de muito tempo.
Independente do cinema, o mito do herói que a história do Cristo apresenta é o mito mais impregnado em nosso imaginário, crente ou não. Funciona mais ou menos como afirmou Karl Jung (Memórias, sonhos, reflexões):
"No Anion (1951) retomei o problema do Cristo. Para mim não se tratava mais do problema dos seus paralelos históricos, mas de um confronto de sua figura com a psicologia. Nessa obra não considerei o Cristo como uma figura livre de todos os seus aspectos externos; procurei, pelo contrário, mostrar o desenvolvimento através dos séculos do conteúdo religioso que Ele representa. Eis o que queria expor, acrescentando o estudo de todas as interpretações importantes que, com o correr do tempo, foram se acumulando a seu respeito. Durante esse trabalho surgiu também o problema da figura histórica do homem Jesus. Esta questão é cheia de significado, pois a mentalidade coletiva de sua época – arquétipo que então se formara, a imagem do 'Anthropos' – precipitou-se sobre ele, quando ele não era mais do que um profeta judeu quase desconhecido. A antiga idéia do 'Anthropos', cujas raízes se encontram parte na tradição judaica, e parte no mito egípcio de Horus, se apoderara dos homens no começo da era cristã, pois correspondia ao espírito do tempo. Tratava-se do 'Filho do Homem', do próprio Filho de Deus, que se opunha ao divus Augustus, soberano deste mundo. Esta noção transformou o problema judaico originalmente do Messias num problema universal."
Olhando para o filme, apenas a imagem em que Jesus levanta-se do túmulo e sai é apocatastasica, mas de um poder aliviador sem igual. Mesmo mostrando parcialmente o seu corpo nu, porque está escondido pelo superclose de sua mão transpassada, a imagem acarreta no espectador o golpe de misericórdia.
Porém, é na segunda intuição da “veritas” de Gibson que encontramos o “pulo do gato”. Mais do que um acesso de crise existencial, ou uma conversão de supetão, o ator/diretor mostrou ser um ótimo aprendiz de roteirista com um outro diretor que parece ter influenciado o seu processo de criação. De acordo com as revistas especializadas sobre cinema na época de lançamento do filme no Brasil, Mel Gibson teria dito que o seu antigo desejo de filmar a história de Jesus Cristo foi reavivado quando fez o papel de um padre que perde a fé e a recupera no filme Sinais de M. Night Shyamalan.
Retomando o filme de Shyamalan, pode-se perceber que as sementes que Gibson planta em seu filme vieram da manipulação que o diretor indiano faz do sentimento de medo para gerar fé e esperança. Estratégia que aparecem não só em Sinais, mas também em Sexto Sentido e Corpo Fechado. É óbvio que não se trata do medo de coisas reais e objetivas, mas o medo de algo inexplicável e paradoxal. Não é o medo comum e natural, mas aquilo que Rudolf Otto chamou de “numinoso”, elemento primordial e instintivo do sagrado. A palavra vem do latim “numem”, que basicamente quer dizer “aceno”, isto é, um sinal que ativa uma experiência instintiva diante de uma presença inexplicável. Ora, e o cinema não causa semelhante sensação? No caso de Gibson, o medo é provocado por um Cristo que, apanhando até não poder mais, conduz o cinéfilo à não abandonar (ou se converter) à fé em Deus. Fazendo acreditar que Cristo realmente está sofrendo, o diretor abandona o assistente à sua “experiência numinosa”, à sua inexplicável sensação de que “deve” alguma coisa para Deus.
José Arthur Giannotti mata essa charada em seu artigo sobre o filme, "Purificação pelo sangue" (“Mais!”, Folha de São Paulo, 16/05/2004). Ele diz: “Como transpassar essa violência banalizada para ressuscitar o sentido religioso do sacrifício? Obviamente numa sociedade de massa e de consumo, o sacrifício tende a se dissipar numa espécie de deglutição do outro, que reaparece simplesmente como outro a ser de novo devorado, num processo em que a violência imaginada sem limites torna aparentemente irrelevante a violência real.” Em outras palavras, a violência contra o Cristo, imaginário eterno carimbado na cultura ocidental, no fundo, reflete a própria violência uns contra os outros. Para resolver o impasse, toma-se uma medida muito simples: ao machucar o outro se expia a culpa machucando a figura do Cristo, em vez de temer as próprias culpas, teme-se o Cristo desfigurado, pois ele é só uma imagem e não a realidade. Sobre a imagem é possível lançar quantas mortes se quiser; a figura do Cristo aceita a desfiguração que se imaginar. O telespectador sai da sala sentindo-se culpado, mas esperançoso de que mudando o mundo interior, muda-se automaticamente o mundo exterior. Mas, em lugar de resolver o mundo real por meio de ações concretas, sejam elas políticas ou sociais, utiliza-se o auto-engano, a imitatio do cinema; eis o segredo de Hollywood.

Hermenêutica quietista

Aparentemente, num primeiro golpe de vista, temos a impressão que Gibson, ou seus assessores “acadêmicos”, deram preferência à moldura redacional do evangelho de Lucas, pois é nele que os romanos são “desculpados” e os judeus são “culpados” pela morte de Cristo. Aparentemente, porque na verdade o filme em nenhum momento fecha o tema. Pistas podem ser coletadas quando entre os acusadores de Jesus no Sinédrio aparecem alguns “justiceiros” tentando convencer a laia religiosa de Israel a não condenar o inocente, ou quando Cláudia, em sua janela e em seus pesadelos, tenta convencer o marido Pilatos a não atentar contra o judeu, ou ainda quando os acusadores não estão entre os principais religiosos, ou entre os verdugos romanos, mas entre o povo ensandecido por sangue e morte.
Em todo caso, sejamos realistas, em vez de se discutir apenas quem matou Jesus, por que também não se discute se o que chegou até nós sobre o Cristo é fato ou não? Já que nós, modernos herdeiros da historiografia moderna, e por isso mesmo tão preocupados com os fatos e eventos como eles realmente aconteceram, por que não nos perguntamos como esses fatos e eventos foram transmitidos até a nossa geração? Sem pieguice, a resposta é a mesma para Gibson e para os crentes: porque o cristianismo receia descobrir que não foi nada disso o que ocorreu, e se isso for verdade, culpar judeus, romanos ou qualquer suspeito por pecados, deixa de ter sentido. O crente não suporta pensar que possa existir um outro lado da moeda, existindo ele ou não. Para ele não interessa a justiça, o que interessa é a ortodoxia, não interessa a ação transformadora, importa olhar de longe, mais ou menos como Cláudia em sua janela, olhando o mundo acontecer, mas preferindo ficar longe dele. Admite-se olhar pela janela do cinema sem no entanto envolver-se com o que se vê nela, pois nisso há o perigo do compromisso. É a velha hermenêutica quietista funcionando: você fica do lado de cá quieto interpretando quem matou Jesus e o Mel Gibson fica do lado de lá, quieto no seu canto, tentando interpretar a história pela solução do quanto menos melhor. Enquanto isso o pau come solto no mundo-cão.

Detalhes

Falando em mundo-cão, uma coisa que Gibson fez bem foi preencher as lacunas da narrativa da paixão com uma moldura teológica que basicamente coloca Cristo como o herói e Satanás como o vilão. Em todo o filme a tensão fica clara, e não pode significar outra coisa senão que Gibson está dando a sua versão para a paixão de Cristo. Para ele Cristo teria morrido para um propósito cósmico que envolve a luta do bem contra o mal. Com isso o diretor dá sentido a uma narrativa fragmentada, algo que não se percebe quando se lê os evangelhos, pois o cristianismo faz uma leitura pressuposta, que tenta dar unidade e encadeamento onde não há. Por isso Gibson corrige o problema da fragmentação sabendo que no cinema isso pode ficar superdimensionado.
A arte católica é revisitada na fotografia do filme. Além dos momentos litúrgicos e teatrais de algumas cenas, outras expõem a imitação e a semelhança de quadros famosos dos grandes pintores do cristianismo. Exemplo temos quando Jesus Cristo desce da cruz no colo de Maria sua mãe. Com um pouco de observação podemos ver nessa imagem a Pietá de Michelangelo. Não chega a ter a beleza do filme de Franco Zefirelli, mas cumpre o seu papel. Aliás, alguns títulos de obras de pintores famosos aparecem nos créditos finais.
Gibson quebra a regra da cinematografia norte-americana de preferir usar o inglês como língua padrão em seus filmes. Ao utilizar o grego koiné, o aramaico e o latim, cria não só um clima de originalidade, mas também desafia o cinema ao mistério das imagens, sem explicações ou racionalizações.
Satanás provoca Jesus duas vezes. Na primeira, logo no começo do filme, Satanás dá à luz a uma serpente, clara alusão à tentação, desejando inibir o ministério de Cristo desde o início. Numa segunda vez, Cristo é tentado quando está vivendo o processo de sofrimento antes de morrer. Satanás traz no colo uma criança, provavelmente seu próprio filho, talvez uma espécie de anticristo, não no sentido escatológico, mas de ser contra o Cristo. Se for isso, a provocação é: “Como pai eu cuido do meu filho, mas o seu pai, onde está?”
Gibson mostra sua ortodoxia católica ao pôr na boca de Maria o credo do sagrado coração de Maria: “Carne de minha carne, coração do meu coração, deixe-me morrer com você meu filho...”
Por fim, a tensão que Pilatos sofre diante do dilema ético de entregar ou não Jesus à morte é genial. Genial porque é o reflexo perfeito dos dilemas que nos acediam o tempo todo, e mais ainda, porque a saída de Pilatos para o dilema é muito semelhante às soluções que nós escolhemos para os nossos dilemas: a Deus o que é de Deus e à vida o que é da vida.
07/2004

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