sexta-feira, 23 de maio de 2008


Além da Linha Vermelha(The Thin Red Line, EUA, 1998)

Gênero: Drama/Guerra
Duração: 170 min
Distribuidora: CIC
Produtora(s): Geisler-Roberdeau, Fox 2000 Pictures, Phoenix Pictures
Diretor: Terrence Malick Roteirista: Terrence Malick
Elenco:Sean Penn, Adrien Brody, James Caviezel, Ben Chaplin, George Clooney, John Cusack, Woody Harrelson, Elias Koteas, Jared Leto, Dash Mihok, Tim Blake Nelson, Nick Nolte, John C. Reilly, Larry Romano, John Savage, John Travolta, Arie Verveen, Kirk Acevedo, Penelope Allen, Benjamin Green, Simon Billig, Mark Boone Jr., Norman Patrick Brown, Jarrod Dean, Matt Doran, Travis Fine, Paul Gleason, David Harrod, Don Harvey, Kengo Hasuo, Ben Hines, Danny Hoch, Robert Roy Hofmo, Jack, Thomas Jane, Jimmy Xihite, Polyn Leona, Simon Lyndon, Gordon MacDonald, Kazuki Maehara, Marina Malota, Michael McGrady, Ken Mitsuishi, Ryûji Mizukami, Larry Neuhaus, Taiju Okayasu, Takamitsu Okubo, Miranda Otto, Kazuyoshi Sakai, Masayuki Shida, John Dee Smith, Stephan Spacek, Nick Stahl, Hiroya Sugisaki, Kouji Suzuki, Tomohiro Tanji, Minoru Toyoshima, Terutake Tsuji, Steven Vidler, Vincent Wild, Todd Wallace, Will Wallace, Joe Watanabe, Simon Westaway, Daniel Wyllie, Yasoumi Yoshino, John Augwata, Joshua Augwata, John Bakotee, Immanuel Dato, Michael Iha, Emmunual Konai, Stephen Konai, Peter Morosiro, Amos Niuga, Jennifer Siugali, Carlos Tome, Selina Tome, Charlie Beattie, Kick Gurry, Lukas Haas, Shawn Hatosy, Randall Duk Kim, Darrin Klimek, Donal Logue, David Paschall, Jace Phillips, Bill Pullman, Felix Williamson
Compositor: Hans Zimmer

Que guerra é essa no seio da natureza? Por que a natureza luta com ela mesma?

Talvez todos sejam parte de uma grande Alma, faces do mesmo homem, um grande Ser. Todos buscando sua própria salvação, como um carvão tirado do fogo.

Você é correto, bondoso? Sua confiança se baseia nisso? É amado por todos? Saiba que eu era também. Acha que sofrerá menos porque amava a bondade, a verdade?

Este grande mal, de onde ele vem? Como ele penetra o mundo? De que semente, de que raiz ele cresce? Quem está fazendo isto? Quem está nos matando? Roubando nossa vida e nossa luz? Zombando de nós com a visão do que poderíamos conhecer?

Nossa ruína beneficia a Terra? Ajuda a grama a crescer, o Sol a brilhar? Este mal também está em você? Já passou por isto?
Nada nos fará esquecer, todas as vezes que recomeçarmos. A guerra não enobrece os homens, transforma-os em cães, envenena a alma.

Amor, de onde ele vem? Quem acende esta chama em nós? Nenhuma guerra pode apagá-la, conquistá-la. Eu era um prisioneiro, você me libertou.

Nós éramos uma família. Tivemos que nos separar. Agora nos voltamos um contra o outro, um no caminho do outro. Como perdemos a bondade que nos foi dada? Deixamos escapar, a dispersamos descuidados. O que impede que vençamos, que alcancemos a glória?

Um homem vê um pássaro morrer e só vê a dor. Mas a morte tem a palavra final. Ela ri dele. Outro homem vê o mesmo pássaro e sente a glória, sente algo sorrindo nele.

Por que ficamos juntos? Quem eram vocês com quem eu vivi, com quem caminhei? O irmão, o amigo. A escuridão da luz, a inimizade do amor, são obras de uma mente, traços do mesmo rosto. Minha alma deixe-me penetrar em você. Veja por meus olhos, veja as coisas que fez. Todas as coisas brilhando.

Filosófico? Poético? Pois se trata de alguns aforismos ou vozes internas (pensamentos em voz alta) que podem ser encontradas no filme Além da Linha Vermelha de Terrence Mallick, que ficou pelo menos 20 anos coletando imagens para que pudesse fazer sua reestréia no cinema. Neste filme, de forma excelente fez o seu protesto contra a idiotice das guerras usando como pano de fundo a batalha de Guadalcanal na Segunda Guerra. Resultado? Um “Urso de Ouro” e 7 indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor.
Pesado, denso, tomadas lentas, muitas vozes internas, é preciso paciência e muita atenção para não perder a relação das cenas com a narrativa. Aliás, o soldado Witt (James Caviezel) é responsável pela narrativa e pela maior partes desses pensamentos em voz alta que lemos acima.
Entretanto, você pode estar se perguntando: Por que um filme de 1999, denso e que nem a TV se importou? Explico minha experiência: Foi numa Quarta-feira, resolvi assistir ao filme O Pianista, que também se tratava de uma narrativa passada em plena Segunda Guerra, com a diferença de que o pano de fundo era o gueto de Varsóvia. Qual foi minha surpresa quando vi o ator Adrien Brody (ganhador do Oscar 2002 de melhor ator) como o protagonista na pele do judeu Wladyslaw Szpilman. Olhei aquele rosto esquálido e, como um raio, lembrei: Além da Linha Vermelha. Depois pensei: Mas afinal, o que ele fez neste outro filme de guerra? Só me lembro do rosto!
Depois que assisti O Pianista, resolvi “ressuscitar” as imagens já apagadas em minha mente do filme Além da Linha Vermelha. Outra surpresa: Brody não diz uma palavra sequer neste filme, mas não sei exatamente porque, consegui lembrar-me de seu rosto. Será que meu inconsciente ficou marcado com as cenas melancólicas de Guadalcanal? Não importa. Importa que redescobri essa obra prima que grita bravamente contra a burrice das guerras. Seu maior triunfo foi realizar isso questionando sobre a morte, em todas as sua sutilezas.
A genialidade de Mallick ao tratar o tema se revela em suas colagens de narrativa com cenas que muito possuem de simbólicas. Exemplo fica logo no início do filme quando, antes da voz interna do soldado Witt (que diz: “Que guerra é essa no seio da natureza?”), aparece um crocodilo descendo às águas esverdeadas de Guadalcanal. De certa forma, a cena dá o tom imaginário que acompanhará todo o filme: a morte é predadora.
Em seguida, outra tomada simbólica: habitantes locais, “selvagens” esquecidos naquele mundo perdido e distante, jogam o “Cachangá”. Quem conhece, sabe que essa brincadeira é acompanhada da seguinte canção: “Escravos de Jó jogavam o Cachangá, tira, põe, deixa ficar, guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá.” Jogo da morte, entre guerreiros que lutam uma guerra insana? Guerreiros que sucedem um após o outro, que morrem um depois do outro, sempre e sempre? Talvez, mas na parte final do filme o sargento Welsh (Sean Penn) deixa escapar a essência do mesmo jogo numa bela oração: “É tudo uma mentira. Tudo que vemos e ouvimos. Tantos são enviados. Não param de chegar, um após o outro. Estamos numa caixa, uma caixa em movimento. Eles o querem morto ou em sua mentira. Um homem só pode fazer uma coisa: encontrar algo que é dele, construir uma ilha para si. Se eu nunca O encontrar nesta vida, quero sentir a ausência, um vislumbre de Seus olhos e minha vida será Sua.”
Um soldado “filosofa” sobre a morte: “Lembro-me da morte de minha mãe. Ela estava toda encolhida e pálida. Perguntei-lhe se estava com medo. Ela só balançou a cabeça. Tive medo de tocar a morte que vi nela. Não vi nada de bonito no retorno dela para Deus. Já ouvi sobre a imortalidade mas ainda não a vi.”
Vi e não vi, disse o soldado. A morte é invisível, tanto quanto a imortalidade, mas a morte empalidece, nos faz encolher, tremer de pavor, nosso corpo reage antes que ela venha completamente – a morte é visível, a imortalidade é uma promessa invisível. Daí porque Mallick mostra as faces amedrontadas dos soldados da Cia “C”, que chegam a se contorcer de dor, de sofrimento, de angústia, pois sabem que não lutarão contra muitos inimigos, lutarão contra apenas uma inimiga eterna: a própria morte. Não por acaso Rudolf Otto, cientista da religião, escreve em seu livro, “O Sagrado”, que a morte é uma das bases mais poderosas que fez com que o homem “inventasse” a religião, “inventasse” a sua relação com o sagrado.
Em outro momento o soldado Witt pergunta à uma mãe autócne se as crianças daquele local nunca brigavam. Ela responde: “Às vezes, quando estão brincando (playing)”. Será que a luta, a guerra, a briga nasce do jogo, da brincadeira? Será que guerra é um jogo, uma brincadeira de adultos?
Em seguida Witt pergunta se ela e os outros têm medo dele. Ela responde que sim, pois parece que são do exército. Ou seja, com a sutileza de um mestre Mallick denuncia que soldados, exércitos, têm cheiro de morte.
A pergunta dessa mulher fez-me lembrar do artigo de um biblista, especialista em Antigo Testamento e professor da Universidade Metodista de SP, professor Milton Schwantes. Em resumo, em uma das partes de sua análise sobre o texto do profeta Ezequiel, o trecho que fala sobre o “vale dos ossos secos”, Schwantes afirma que exércitos só podem produzir uma coisa: mais vales de ossos secos.
Apesar da farda, Witt nunca está desanimado, carrega um sorriso de “Gioconda” nos lábios, e entrega-se à morte voluntariamente. Sinal de esperança, Witt se contrapõe ao olhar pessimista dos outros soldados e oficiais. Seus olhos são líricos, conseguem ver poesia nas pequenas coisas que o lugar e a guerra lhes proporcionam. É um paradoxo na pele de um soldado. Isso parece ficar claro quando Witt se depara com o pessimismo do sargento Welsh, que lhe diz: “Nunca será um verdadeiro soldado neste mundo de Deus. Neste mundo, um homem não é nada. Não há outro mundo além deste”. Witt, contrariando Welsh, lhe diz: “Não acho que me odeie. Eu não o odeio.” O diálogo ganha em simbolismo quando Witt diz essas palavras acendendo e apagando palitos de fósforo, um após outro. A única certeza que Welsh e Witt podem ter: um dia se apagarão como os palitos de fósforo. Mas para Witt, antes de isso acontecer, é melhor crer na esperança do que na guerra, essa coisa nascida do ódio.
Numa cena semelhante, mas com sentimento oposto ao demonstrado por Witt, o capitão Staros treme e tem os olhos mortificados diante de uma vela acesa, que ele sabe, logo pode se apagar. Nossa vida é a chama de uma vela, já disse Bachelard.
Ao longo de todo o filme sempre aparece algum pássaro, na maioria das vezes voando. Símbolo da alma, de que nossa vida voa quando a morte surge? Deve ser por essa causa que na penúltima cena do filme duas aves se beijam.
Em algumas cenas de batalha, a câmera não mostra apenas corpos feridos e estendidos pela morte, mas principalmente, seja do lado japonês ou norte-americano, mostra homens em estado de loucura, insanos andando de um lado para o outro, falando palavras desconexas como se estivessem no hospício. Eis o quadro da guerra pintado por Mallick.
A vida escorre pelas nossas mãos, escorrega por entre os dedos. Preciosa, cara, esgotada, ela vai e não volta – Tempus Fugit. Essa parece ser a mensagem quando Witt, em três cenas seguidas, mostra como a vida “escorre”, se perde. Na primeira cena, Witt displicentemente joga água de seu cantil sobre a folha de uma planta, que por ela escorre. Na segunda cena Witt toma banho em uma cachoeira, e agora a água escorre por ele. Na terceira, o soldado deixa a água que colheu de um ribeirinho escorrer por suas mãos. Faz isso várias vezes como se estivesse “brincando” distraído.
A essa altura você deve estar imaginando que eu estou viajando, vendo coisas em cenas aparentemente sem importância. Concordo se estivéssemos analisando um filme como Lagoa Azul, mas num filme de pretensa ação, de guerra, elas dizem muito, falam mais do que mil palavras.
O tenente coronel Gordon Tall (Nick Nolte) chama a atenção do capitão Staros por sua “bondade” e o destitui de seu posto. O tenente coronel diz: “vence o mais forte”. Aí está. É a lógica da natureza selvagem. Será que regredimos a um estado de primitividade, de selvageria, onde ser bom é mau? É isso que a guerra faz?
A guerra inverte a lógica do sentimento humano, torna o homem incapaz de lidar com a morte. Isso aparece quando um soldado diz: “Não importa quanto treinamento tenha, quanto cuidado tome, é questão de sorte não ser morto. Não importa quem seja ou se é durão. Se estiver no lugar errado na hora errada, já era. Olho aquele rapaz morrendo e não sinto nada. Não ligo para mais nada.”
No fim do filme, Mallick tenta dar um berro silencioso de paz: de um capacete de guerra, dentro de um rio, germina uma pequena planta, uma pequena raiz de esperança.

05/2003

Nenhum comentário: