sábado, 24 de maio de 2008

Demolidor - O homem sem Medo

Demolidor – O homem sem medo

Daredevil - “Demolidor – O homem sem medo” (EUA, 2002, 103 min.)
Elenco: Ben Affleck (Pearl Harbour), Jennifer Garner (Alia), Michael Clarke Duncan (Amargedon e À Espera de um Milagre), Colin Farrell (Minority Report), Joe Pantoliano (Matrix)
Direção: Mark Steven Johnson
Roteiro: Mark Steven Johnson
Produção: Avi Arad, Gary Foster, Stan Lee (criador de “Daredevil” da “Marvel Comics”), Arnon Milchan
Distr. 20th Century Fox


O Demolidor nos quadrinhos
O Demolidor (Daredevil – algo como impetuoso, intrépido, valente) foi criado pelo desenhista Bill Everett (Namor, o Príncipe Submarino) e pelo escritor Stan Lee (Hulk, Quarteto Fantástico, Homem-Aranha e X-Men). Fez sua primeira aparição em 1964 em sua própria revista e, para surpresa dos leitores e diferença em relação a outros heróis, apareceu com fortes contornos humanos e, principalmente, cego. Com o Demolidor, Lee quis reforçar o seu conceito de heróis com problemas pessoais e conflitos internos.
O Demolidor passou toda a década de 60 e a de 70 sem nenhuma grande história, ao ponto de quase desaparecer. Mas foi nas mãos do habilidoso desenhista Frank Miller, em 1978, que o Demolidor ganhou roteiros mais criativos.
“Para elevar o personagem ao panteão da Marvel, Miller notou que era necessário um grande arqui-inimigo. Para isso, extraiu o Rei do Crime, um coadjuvante de quinto escalão do Homem-Aranha, para se tornar o algoz de Demolidor. O desenhista/roteirista também revitalizou outro marginal que era uma nota de rodapé na história da editora: o Assassino Mercenário. Mas, mais importante que tudo, Miller introduziu a personagem Elektra Natchios, uma ninja assassina que, anos antes, havia sido o grande amor de Murdock, enquanto ambos cursavam Direito na Universidade de Columbia” (Marcel Nadale, 2003, http://e-pipoca.ig.com.br/news_zoom.cfm?id=1001).
Em 1982 Miller deixou a revista e reapareceu apenas em 1986, para novamente injetar mais uma dose de humanidade no Demolidor. Dessa vez criou a minissérie “A queda de Murdock”: o Rei do Crime descobre a sua identidade secreta, o que acarreta a sua total decadência. Murdock recebe apoio da Igreja, é acolhido por um grupo de freiras e, entre elas, descobre a sua mãe. Com a ajuda do Capitão América, o Demolidor consegue se vingar do Rei do Crime.

O Demolidor no cinema
No filme a personagem dos quadrinhos recebe uma pitada de síntese biográfica antes de dar seus primeiros socos e ponta-pés.
Matthew Michael Murdock era filho de um pugilista fracassado chamado Jack Murdock. Seu pai o proibiu de brigar, mas mesmo assim passou a treinar às escondidas.
Matt ficou cego depois que tentou salvar um velho que seria atropelado por um caminhão. O velho foi salvo, mas um produto químico radioativo caiu nos olhos de Matt, o que fez com que seus sentidos se tornassem mais aguçados, ganhando um tipo de “radar”. Passou a “enxergar” formas e contornos de acordo com os sons que esbarravam alguma barreira ou objeto, semelhante ao que ocorre com os morcegos.
Depois do acidente conheceu um homem cego chamado Stick, que o treinou nas artes marciais. Em pouco tempo Matt havia se tornado um mestre em lutas.
Para conseguir dinheiro, Jack Murdock, pai de Matt, começou a trabalhar para um criminoso denominado Fixer, que o obrigou a entregar uma luta. Ao ver seu filho na platéia, lutou para vencer. Homens de Fixer na mesma noite o mataram. Daí em diante, Matt transforma-se no Demolidor, seguindo vários pontos em comum com as histórias em quadrinhos desde a condução de Frank Miller.
Quem lê os quadrinhos sabe que o Demolidor sempre preserva a vida dos criminosos que foram presos pela atuação de Murdock, advogado durante o dia. No filme, bem no início, deixa que um criminoso morra violentamente.

O heroísmo: de Gideão ao Demolidor
Defronte às águas de Harode se levantava uma miríade de tendas, dava para contar pelo menos trinta e duas mil almas. A grande batalha era iminente, mas Gideão ainda não havia se decidido com quantos soldados atacaria aqueles malditos midianitas – estavam lá, dormindo, quietos em seu vale da sombra da morte, sem saber que pela manhã estariam todos mortos.
Javé, o Deus que Gideão conhecia como “Senhor dos exércitos” de seu povo, disse a ele: Há soldados demais. Faça descer todos os homens para a fonte de Harode. Aqueles que seguirem o ritual que eu te disser, esses irão contigo para a batalha.
Gideão prontamente obedeceu. Dez mil desceram até as águas, mas apenas trezentos fizeram o que Jeová havia dito a Gideão: “como cães devem lamber as águas, de joelhos devem saciar a sede.”
A batalha foi ganha, heroicamente ganha. Apenas trezentos homens que solenemente seguiram o ritual, excomungaram seus inimigos.

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Perseu se prepara para sua luta mais difícil. Com gestos lentos, cadenciados e quase como em um ritual, veste suas sandálias, abraça seu escudo e empunha firmemente sua espada. Alguns não são objetos próprios, seus. As sandálias aladas ganhou de Hermes, o mensageiro dos deuses. O escudo é da bela Atena, filha de Zeus, deusa das artes úteis e ornamentais. Por isso toda a liturgia, todo o simbolismo que aqueles artefatos suscitam em Perseu.
Num só golpe a espada atravessa o pescoço de um lado ao outro. Finalmente a horrível morte está morta. Aqueles olhos petrificantes e aquela cabeleira de víboras já não mais enfeitiçam.
Morta, Perseu toma a cabeça da Medusa e heroicamente leva em oferta à sua protetora, Atena, que orgulhosa, passeia pelo reino de sua beleza.

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É Novembro de 1941. Madrugada fria e nebulosa. Uma fina neblina encobre jovens que preparam-se num rígido ritual: rezas, roupas-armaduras prontas para a batalha, faixas em redor da cabeça, bebem liturgicamente os últimos goles de suas vidas. Marcham, irredutíveis para seus pássaros-túmulos.
Caem. Caem vertiginosamente gritando “torá, torá, torá!” (tigre, tigre, tigre). Explodem em bolas de fogo que se multiplicam por toda a baia de Pearl Harbour. São “kamikases”, espécie de homens-pássaros, que num ato de extrema coragem, num ato de profundo heroísmo, se transformam em soldados-sacerdotes.

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A noite cai em New York, e um cego, nas trevas de seu apartamento, tateia e veste sua maleável armadura vermelha. Escolhe sua bengala mortal e sai. Saltando entre janelas e parapeitos, espreita os becos e ruelas que infestam a “cozinha do inferno”, aguardando para fazer justiça na próxima curva.
Em meio aos altos sons, fortes fedores e sabores amargos que são emitidos-exalados-experimentados do caldeirão da “cozinha”, Daredevil repete no compasso de seu coração: “eu sou um cara do bem...; eu sou um cara do bem...; eu sou um cara do bem...”.
Imediatamente cai vertiginosamente, abate seu oponente e livra mais uma vítima da injusta violência da “Big Apple”. Mas continua, madrugada adentro, pregando para si mesmo: “eu sou um cara do bem...; eu sou um cara do bem...; eu sou um cara do bem...”.

Humano, demasiado humano
Dizem os “entendidos” que histórias em quadrinhos (HQs) só servem para a fruição. Adaptadas ao cinema então, nem se fale. Heróis de HQs só possuem uma utilidade: diversão e nada mais. Pouca coisa parece real, verossímil. Não há espaço para o humano nem para as reflexões filosóficas ou científicas. Logo, leia e jogue fora, assista e esqueça.
A coisa piora quando se percebe que tanto as HQs quanto o cinema são mídias de massa, que, fetichizadas, vendem como nunca. Não é a toa, portanto, que filmes do tipo “Homem-Aranha” e “O Demolidor” bateram recordes de bilheteria nas primeiras semanas de estréia.
Porém, contornando os ataques repentinos de ascetismo e purismo dos críticos sociais, que acham que toda cultura pop não vale nada e, “atropelando” os utilitaristas de plantão, que não enxergam mais do que um palmo diante do nariz, não por cegueira, mas por ignorância, pode-se perceber que algo mudou. A linguagem mudou.
Outrora os heróis eram impassíveis, poucos ou quase nenhum ponto fraco, capazes de virar o planeta de pernas para o ar ao realizarem seus feitos, eram justiceiros universais, transformados, musculosos, armas poderosas e, principalmente, nada humanos. Quer dizer, pelo menos internamente. Fora, externamente, até podiam ter a aparência de seres terrestres, mas dentro..., nem um pouco daquelas coisas que nos fazem realmente humanos: medo, crises existenciais, paixão, arrependimento, paradoxos. Quase deuses, não precisavam sentir, só precisavam de um bom inimigo, de um oponente a altura.
Foi a “Marvel Comics”, uma das maiores empresas produtoras de HQs de heróis, junto com Stan Lee (Homem-Aranha) e Frank Miller (Batman), que mudaram esse cenário. Empreenderam a tarefa de criar heróis cada vez “menos poderosos” e cada vez “mais humanos”. Não foi difícil. Bastou acrescentar os ingredientes que fazem um ser humano ser humano, e colocá-lo em cenários fac-símiles dos nossos reais.
O cinema não ficou atrás. Percebendo que a linguagem deu certo nas HQs, adaptou-a às telas, criando assim a era dos filmes de heróis em quadrinhos. Claro que já tivemos outros heróis em cena, mas nada que se compare às técnicas utilizadas nas histórias modernas. Apesar da tecnologia e dos efeitos especiais, sem o que seria impossível conceber esses “arrasa quarteirões”, os roteiristas e diretores não desprezaram uma construção narrativa por detrás do herói, sempre levando em conta o seu lado humano.
Obviamente não podemos ainda esperar muito dos diálogos em meio à porradas e pancadarias, mortes e praguejos. Mas não há dúvida, são heróis profundamente humanos, com medos, crises e..., pasmem, dor de barriga.
Isso significa que não são só os heróis da Bíblia, da antiga Grécia ou do mundo moderno que sangram, preparam-se para a morte, para a batalha e, muitas vezes, tremem de medo. Os heróis das HQs também. De alguma forma revelam os nossos próprios medos, crises existenciais, dúvidas, paradoxos e paixões. Afinal, quem de nós não sonhou com a oportunidade de ser herói algum dia? Atire a primeira pedra quem não pensou alguma vez fazer justiça se tivesse super-poderes, ou vá lá, pelo menos umas habilidades extraordinárias. Mesmo assim, semelhante a esses heróis, continuamos nos questionando de onde viemos, para que servimos, para onde vamos etc.
O que você faria se precisasse escolher entre salvar dez pessoas ou mil? Ou quem sabe, entre ficar com o emprego atual ou mudar para outro? Pois é com questões éticas como essas que esses heróis lidam. Seja na superdimensão do heroísmo, seja na manutenção de um simples relacionamento com a noiva, eles se parecem muito conosco. Às vezes até, exatamente como nós, sentem mais dificuldades com um relacionamento do que com um ato de heroísmo.
Não por acaso a literatura por séculos elaborou seus gêneros a partir das narrativas que mantém o seu foco principal na personagem, que por sua vez imitou todos os “cacoetes”, hábitos e pensamentos do homem real. Sejam as personagens das antigas mitologias, sejam as realistas, elas carregam uma quantidade enorme de humanidade, exatamente como fazem os modernos heróis.
É claro que a violência assusta, assim como atitudes vingativas por parte de alguns heróis, mas não podemos negar, a linguagem das HQs há mais de meio século tem feito sucesso no imaginário coletivo, assim como a linguagem dos mitos e de seus heróis há muito mais séculos. Nesse caso, violência e vingança não são apanágios somente dos quadrinhos, mas também dos antigos sistemas mitológicos, dos contos de fadas etc.
Aquilo que o nosso insensato racionalismo nega ao púbere, as HQs oferecem em abundância. Do mesmo modo como somos regidos por velhos mitos que simbolizam nossa humanidade e desejos heróicos, as HQs oferecem modernos mitos aos adolescentes. Que diga o RPG (Rolling Playng Game – Jogo de Representação) que tornou-se febre entre os jovens do mundo inteiro. Exatamente de acordo com a linguagem imaginária das HQs, o RPG permite ao indivíduo representar suas mais prementes características humanas, inclusive, resolvendo alguns de seus conflitos internos.
Não vou mentir, está explícito que tenho uma certa fascinação pelos quadrinhos e mais ainda pelo cinema. Além do mais, não escondo que na adolescência meus dois heróis prediletos eram o Homem-Aranha e o Demolidor. Não sabia exatamente a razão disso, mas parece que estou descobrindo, e, pelo que vejo, não só eu. Como dizia David Hume, filósofo escocês empirista do século XVIII: “Nada é mais livre do que a imaginação do homem”.
Para saber mais, recomendo a leitura dos livros de Álvaro de Moya, especialista na linguagem e na história dos quadrinhos.
03/2003

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