sábado, 24 de maio de 2008

Alumbramentos

(Alumbramentos - Brasil, 2002)

Gênero: Ficção
Duração: 20 min
Direção e Montagem: Laine Milan
Roteiro: Marcelo Esteves
Fotografia: Mauri Nicolotti
Direção de arte: Maria Emilia Aguiar
Edição de Som e Som Direto: Cristiano Scherer
Música original: Célio Balona
Direção de Produção: Sergio Melo
Produção Executiva: Carlos Wagner La-Bella
Coordenação de Produção: Bianca Loretto Cia. Produtora TVi - Televisão e Cinema
Elenco Principal: Leandro Waltrick de Melo e Tina Rinaldi, Participação Afetiva: Paulo José




Dizem que macaco velho não mete a mão em cumbuca. Mas tenho cá minhas suspeitas; já vi um monte de “primatas humanos” metendo a mão em cumbuca. Agarram a sua banana e não largam, mesmo diante do perigo de morte.
Acho que o ditado na verdade ilustra muito bem os vícios de alguns e a teimosia de outros. Vícios como repetição de um erro e teimosia como insistência no mesmo erro.
Charles Darwin, se estivesse vivo, ficaria corado ao perceber que os primos-homens dos macacos às vezes se demonstram mais ajeitados e adaptados ao provérbio.
Falando em Darwin, além da lição naturalista que ele deu com a sua teoria da evolução, contribuiu muito com outras áreas do conhecimento, inclusive aquela que demonstra como tanta gente, e nem é preciso esperar séculos, jamais conseguiu evoluir, nunca alcançou um mínimo de progresso no modo de pensar, mesmo quando o assunto é o próprio Darwin, pois ainda há os que acreditam que a sua teoria afirmou que o homem se originou do macaco. Senso comum à parte, os “intelectualóides” que precipitadamente citam esse mote antropogônico geralmente se dão mal e acabam confirmando de outro modo a teoria do naturalista inglês: alguns evoluíram, outros não.
Mas vamos ao ponto onde realmente quero chegar, pois a digressão acima revela o quanto já protelei falar do assunto para não ofender o meu leitor. Mas como não há outro jeito macacada, vamos ao que interessa.
Pulando para o galho logo ao lado, confesso que eu mesmo já me fiz muitas vezes de macaco teimoso e vicioso no que diz respeito às palavras. Como alguns dos leitores, eu também tinha uma certa aversão por consultar dicionários. Não, não era só preguiça. Como já disse, e repito, era vício e teimosia. Pensava: “leio, mas tem que ser fácil.” Odiava quem escrevia difícil, sem ter muita consciência de que não eram os textos difíceis, mas a minha pobre mente desnutrida que não possuía um vocabulário suficiente. Alimentada por gibis e televisão, como poderia entender um texto básico, uma simples narrativa literária? Eu era prova pura da “teoria da involução”.
Acreditar que eu não era o único nesse planeta dos macacos mentecaptos não me satisfazia, não fazia me sentir solidarizado. Pelo contrário, já na adolescência comecei a experimentar os meus primeiros alumbramentos com as palavras, achadas entre as poeiras e páginas velhas dos livros da biblioteca do Centro Cultural São Paulo. Descobri “o universo”, encantei-me com a possibilidade infinita de conhecer; fiquei fascinado com o labirinto borgeano que se me abriu diante dos olhos.
Borgeano? Mas que diabo é isso?, deve estar se perguntando o leitor. Calma, a ansiedade mata e a paciência é virtude. Espere até o fim do texto, pois texto é contexto: problema para os leitores apressados que gostam das idéias mastigadas, semelhantes às papinhas para bebês.
Eu sei, as palavras nem sempre são muito amigáveis, às vezes elas tornam-se nossas adversárias e travam conosco uma luta inglória, nos fazem perder tempo. Mas descobri um aliado, um forte e vigoroso aliado: o dicionário. Daí a conquistar uma turma de amigos vitaminados foi um passo: comentários, artigos, enciclopédias, textos críticos, manuais etc. Não perdi mais luta. Pensando melhor, na luta-leitor ganhei quase todos os assaltos, só agora na luta-escritor é que ando apanhando bastante. Mas uma coisa aprendi: leitor ou escritor, a amizade é fundamental; não larguei mais os meus fiéis amigos filólogos e transformei-me em um grafômano. Bem, pelo menos tento.
Largando um pouco o galho que outrora estava sentado, pulemos para o galho de alguns dos meus missivistas navegantes. “Interneteiros” de carteirinha, outros nem tanto, acusaram-me de difícil, de barroco. Vi nisso elogio, e quem dera alguém dissesse que estava chegando à beira do maneirismo. Aí eu alcançaria o céu, aquele mesmo onde jazem a multidão dos poetas, dos escritores e filósofos; o céu de Fédon ou aquele céu amoroso pairando sobre a mesa do “Banquete” platônico. Talvez sendo difícil eu ainda me farte com as migalhas caídas dos escritores-poetas, dos místicos das palavras, que sobre a mesa da aurífera era barroca, que aportou em terras ignotas do Novo Mundo, misturam em seus caldeirões, ardendo pelo fogo plutônico, as tradições dos dois lados oceânicos. Num ritual pantagruélico, como numa incessante cerimônia antropofágica, devoram todas as letras.
Difícil? Eis aí uma palavra fascinante, tanto mais pelo desafio do que propriamente pela palavra em si. Como dizia o excelente José Lezama Lima: “Somente o difícil é estimulante; somente a resistência que nos desafia é capaz de assestar, suscitar e manter nossa potência de conhecimento, mas, na realidade, o que é o difícil?”
Explico. No intento de compartilhar alguns textos com meus alunos e amigos por esse bendito e maldito espaço cibernético que é a internet, não poucos disseram não entender tudo o que escrevo, outros poucos não entenderem nada. Sem pudor avisaram-me de difícil, de obscuro. Difícil mesmo foi tentar compreender porque acham que eu escrevo difícil. Difícil até agora para mim é saber porque o dicionário à mão é negado. Seria o fetiche de possuir um dicionário, uma Bíblia e uma coleção enciclopédica só para enfeitar a estante da sala? Não me convence que a burrice seja estética, mas ao que parece, alguns símios irmãos ainda olham com prazer estético suas cumbucas.
Antídoto? Quem sabe a inspiração, a motivação suscitada pelos olhos até que se possa chegar a uma conclusão neural? Talvez a solução seja indicar mais um filme, dentre tantos que já indiquei. Mas não é só mais um filme, é um filme deslumbrante, um curta-metragem que vale por um longa: Alumbramentos, o curta premiado de Laine Milan. Assisti duas vezes em uma emissora pública, e duas vezes fiquei alumbrado. São só 20 minutos, mas são 20 minutos parabólicos. Contém o mesmo poder das parábolas escandalosas de Jesus, provoca a mesma reação de vergonha e desconforto que as estorietas de Jesus provocavam. Vergonha e desconforto por não ser aquele menino deslumbrado e apaixonado pelas palavras, por um simples dicionário.
Alumbramentos é ambientado numa comunidade da Ilha de Santa Catarina lá pela década de 40. O roteiro é baseado no conto "A sobrinha da senhora Dodsworth", do escritor catarinense Jair Francisco Hamms. Nele, um menino, Francisco, apaixona-se pelas palavras e descobre o mesmo mundo descoberto por Jorge Luis Borges quando, por suas andanças pelos labirintos de palavras e idéias, descobre a sua biblioteca imaginária, o seu livro universal.
O filme teve sua primeira exibição pública durante o 30° Festival de Gramado, sendo que também foi selecionado para o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, Jornada Internacional de Cinema da Bahia, III Festival Latino-Americano de Cine Video e TV de Campo Grande, além do Festival do Rio BR.
Francisco é a metáfora de todos nós, o arquétipo daqueles que desenterram um tesouro escondido onde jamais homem algum pôde achar com a picareta de terceiros. Esse menino consegue unir o tesão sexual pelas palavras, da mesma forma que um adolescente deseja sua primeira namorada, com a reverência religiosa pelas mesmas palavras, exatamente como um beato que reconhece o seu objeto de adoração. Junta numa mesma experiência transcendental o profano e o sagrado, a sexualidade e a religiosidade que emanam das palavras-idéias. Para cada coisa uma palavra, para cada palavra uma coisa. É o logos originário, o engedramento de um universo no ventre de um menino.
Pelo menos se a minha prosa não convence, que o filme interceda por nossa ignorância; tenho certeza que ele cutucará corações e mentes. Se pelo menos não entenderem o que escrevi, que entendam a alma dicionarizada do Chico, os olhos encantados daquele moleque sem pudor com os verbetes.
Enfim, todo texto, toda palavra põe diante de nós um enigma que precisa ser decifrado. Mas também todo conhecimento adquirido por esses mesmos textos e palavras pode nos oferecer uma senda fascinante, de modo que o alumbramento seja nosso companheiro de viagem.
Em vez de escolher a morte da cumbuca, em vez de optar pela insistente e teimosa obsessão pelos textos e palavras fáceis, se é que isso existe, pois depende mais do tipo de leitor do que do tipo de texto, façamos a escolha pelo prazer da leitura.
Diante disso, não me resta outra coisa senão dizer-lhe meu caro leitor, ainda que com uma ponta de receio: “Decifra-me, ou devoro-te”.
06/2003

2 comentários:

Áquila disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Áquila disse...

É prof! Eu também sempre tive uma certa aversão por 'textos difíceis'... Mas, acabei descobrindo que os textos não são 'complicados'. Complicado mesmo é a falta de conhecimento! E o pior de tudo, é que realmente só pode ser pura 'preguiça'!!! Até na Internet já temos vários dicionários (muito bons por sinal!), é só digitar a palavrinha e pronto! Já temos o significado! Mas prometo, vou me corrigir!

Sobre o curta, ainda não assisti, mas, confesso que fiquei bastante curiosa! Onde posso conseguir o vídeo?!

Gostei muito do texto, mas, por favor, evite de me chamar de 'macacada'... kkkkkk!!!

RS!!!!

Abraço Prof!