domingo, 26 de fevereiro de 2012

A INVENÇÃO DE HUGO CABRET



A INVENÇÃO DE HUGO CABRET

Título original: (The Invention of Hugo Cabret)

Elenco: Asa Butterfield, Chloe Moretz, Jude Law, Helen McCrory, Ben Kingsley, Emily Mortimer, Christopher Lee, Sacha Baron Cohen, Ray Winstone

Direção: Martin Scorsese

Distribuidora: Paramount Pictures – 2012

É dispensável explicar ou procurar “segredos” em Hugo Cabret não fosse tão fascinante. É um filme didático sem ser didatista; faz muitas alusões sem ser hermético; está longe dos clichês piegas que geralmente filmes com personagens infantis insistem em se apegar; não promete nada mais além daquilo que cumpre. É um filme sobre “filmes”, uma justa e singela homenagem ao cinema, dando os devidos créditos a quem de direito, por isso emoldurado na França, onde realmente o cinema começa, uma vez que foi lá que nasceu o cinematógrafo dos irmãos Lumiére.

Hugo é um filme metalinguagem e não esconde sua intenção de brincar com a arte do cinema – de como teve início, seus artistas, o ambiente mágico, as primeiras surpresas com os efeitos de câmera, a transposição da linguagem do teatro e da literatura (o “mise-em-scéne”), a mistura de gêneros (comédia, romance, aventura, ficção científica entre outros), – exatamente como Georges Mélies fez.

Se alguém me dissesse: – Vamos assistir a um filme de aventuras com crianças que precisam desvendar um segredo que deve salvar o mundo? Diria não. Exceto aqueles que tenho que cumprir tabela para acompanhar meu filho de 11 anos. Hugo foge desse estereótipo e o fato de ter duas crianças como protagonistas não significa que é um filme para crianças. As crianças estão lá, mas estão como representação da experiência que o cinema proporciona, ou seja, uma fé incondicional na fantasia, na ficção, na mentira que só diz a verdade, como em um conto de fadas (já falei sobre isso em “A Dama na Água”).

Aliás, Hugo não é outro senão o próprio Scorsese: um menino que, apesar de ter perdido tudo o que tinha, precisa criar algo, algo que o salve, que lhe dê sentido. E para que não digam que falei bobagem, o próprio cineasta afirmou: “Sou muito parecido com Hugo”. Mesmo sendo um dos maiores diretores vivos do cinema norte-americano e fazendo um filme a cada dois anos, imagino que Scorsese pense como todo artífice, isto é, a próxima obra é única, aquela que finalmente trará a redenção. Ouso dizer que foi quase isso o que aconteceu. Não pelo “Oscar”, pois esse não é o primeiro de Scorsese que recebe várias indicações, mas porque o cineasta parece ter feito um filme para ele mesmo, para o seu deleite de homem que ultrapassou a barreira dos 70 anos. Um filme que alimenta a sua alma mais do que a de outros. Essa é uma invenção primeiramente dele para ele.

Também dispensa repetir que Hugo deve levar os principais prêmios técnicos. Fotografia (Paris em início de século XX é incrível), som, efeitos especiais e outros são obrigatórios. Mas um efeito em particular me chamou a atenção: o filme foi feito em 3D. Aqui cabe uma palavrinha pessoal sobre isso. Hugo Cabret é até agora o único filme que de fato explorou algumas boas possibilidades dessa tecnologia e de um modo diferente. Ao invés que tentar dar sustos jogando as coisas em sua cara, faz com que você passeie pelo cenário por trás dos objetos e pelos cantos de uma estação de trem. É o mais próximo da sensação de estar no ambiente, coisa que vai demorar um bom tempo para isso se tornar mais real, e não creio que o 3D fará isso (tecnologia que está longe de ser “nova” e existe desde a década de 50).

Alguém pode dizer que “Avatar” foi sensacional em 3D. Na verdade, a não ser pela tecnologia de captação de movimento, que nem nisso foi pioneiro, “Avatar” foi um filme comum, mesmo em 3D. Já disse e torno a dizer: “Avatar” é filme previsível, uma repetição de “Titanic” numa floresta surreal. Se é para defender uma postura ecológica mais radical, prefiro infinitamente “Dança com Lobos”, que antecede e supera o discurso piegas de Cameron.

Essencialmente o filme Hugo faz do tempo e a capacidade de criação do ser humano como seus temas fundamentais. O tempo tem como símbolo os relógios que o menino Cabret precisa manter funcionando, e a criação tem como símbolo o autômato que o menino Cabret precisa fazer funcionar. O cinema se faz com a ilusão do tempo inserido numa máquina de criação, o “cinematógrafo”. A película nada mais é que a impressão das imagens em fotogramas que, movimentados, nos dão a ilusão de movimento ou, em outras palavras, da relação do tempo com o espaço. Para nós isso não é inédito como foi para os primeiros que tiveram a sensação de um trem invadindo a sala de cinema (Scorsese refaz essa cena três vezes no filme), mas continua sendo basicamente a mesma técnica. As imagens congeladas são jogadas em um tempo burilado e moldado para que o filme surja diante de nossos olhos e permitam que uma história seja contada. É necessariamente uma técnica, uma ação conscientemente científica, produzida por um aparelho (agora por muitos aparelhos tecnológicos). Mas, de forma paradoxal, o tempo é simultaneamente o efeito entre a nossa mente e as coisas, um espaço onde encontramos a nossa intuição e imaginação. É um lugar “mágico” onde o cinema faz de conta que é real. Na verdade, é real e irreal ao mesmo tempo.

E já que o cinema surgiu na França, suscito dois franceses para nos ajudar a entender o tempo: Henri Bergson e Gaston Bachelard. Não, não são cineastas, se bem que também criaram obras primas que promovem a compreensão de outras obras primas. Para Bergson o vivido, ou seja, o tempo cotidiano é parecido com o do cinema, pois é feito de momentos que, somados, formam um todo que nos oferece a sensação de fluidez, de tempo contínuo. A isso ele chama de duração. O tempo duração é igual à ilusão dada pelo cinema e só pode ser vivido e não analisado ou percebido de forma lógica, como na ciência. Portanto, é o tempo do sentido, dos símbolos, dos sonhos e fantasias e da intuição.

Para Bachelard, ao contrário de Bergson, mas em complemento, o tempo não é feito de fragmentos em movimento na duração, isto é, de quadros que são postos em movimento no espaço, mas dentro do próprio fragmento ou quadro. Isso significa que, para Bachelard, o tempo é relativo. A ilusão provocada pelo movimento dos fotogramas, que nos fazem pensar que as imagens estão em ação, não exclui que a imagem, aquela congelada, estática, está impressa em cada fotograma. Ela não é menos real que o movimento. Basta vermos quem antes do cinema, as imagens eram “movimentadas” pela narração, no caso da literatura, e pela admiração, no caso da pintura. Logo, para Bachelard o tempo é o instante e nele podemos encontrar um universo inteiro, construir sonhos, imaginários e viver nossa capacidade onírica. Em apenas um quadro, um fotograma, se esconde um mundo.

Mélies, o grande homenageado do filme, exatamente como um mágico, um ilusionista, sabia trabalhar no acetato com essas duas formas de encarar o tempo. Recortava e aprimorava cada fragmento e os punha em movimento, criando a ilusão que é e sempre será o cinema.

Há um outro aspecto do tempo no filme que não está tão explícito assim: o tempo é o símbolo por excelência da morte, da vida que se escoa; é marcado pela inevitabilidade. Se por um lado Mélies está idoso e perdeu a força para encontrar algum sentido para a vida, Hugo Cabret ainda conta com essa força avassaladora que é encontrar um propósito, um sentido para a sua primeva vida. Scorsese está entre esses dois polos. Não, Scorsese não; todo criador está entre esses dois polos, ou, diria mais, toda criatura. O tempo só pode ser vencido ou domesticado no “trabalho” enquanto força criativa do ser humano. Fazendo coro com o filósofo alemão Heidegger, nos muitos modos de ser, contamos nossa história e, ao contar nossa história, vamos “sendo-aí” contra o tempo. Todo “trabalho”, porque muda a natureza do tempo em nossa consciência, e toda forma de narrar quem somos, faz com que tenhamos a ilusão de que existimos e temos uma identidade. Quando “esquecemos” quem somos (Mélies se esqueceu), a morte, atrelada ao tempo que se escoa, vence.

Portanto, a narratividade, ou a possibilidade de contarmos nossa própria história se confunde com as artes narrativas como o teatro, o cinema, a literatura e até os RPGs. Artes representadas pelo livreiro e pela menina que adora livros e aventuras. O cinema é uma forma de matar a morte e vencer o tempo, de criar com o próprio tempo, símbolo da morte, a vida pela narrativa. Em um bom filme, nos encontramos, achamos nossa capacidade de dizer quem somos enquanto humanos. O cinema, faz parte da vitalidade humana “contra” o tempo, como outras artes.

Ainda bem que Scorsese não utilizou um aparelho projetor e um menino como representação do cinema que fala do cinema, pois teria apenas imitado a metalinguagem utilizada em “Cinema Paradiso”. Ele foi original e utilizou um autômato, um robô que realmente existe e foi criado entre 1768 e 1774 e está exposto no Musée d´Art et D´Histoire em Neuchatel, Suiça, e realmente desenha figuras como no filme.

O autômato é um personagem misterioso e tem um olhar, uma feição entre a alegria e a tristeza, as duas faces da vida (do teatro?), que nos leva à fascinação. Como Hugo, sabemos que é apenas um boneco com engrenagens, mas, mesmo sem movimento algum, quebrado, parece estar vivo; a qualquer momento nos dá a sensação de que vai desenhar algo, produzir suas imagens. Trata-se de uma fascinação pelo automatismo que vem de um impulso inconsciente e estratégico da tecnologia, impulso esse que podemos encontrar na antiga relação com as primeiras máquinas intrinsicamente ligadas ao tempo: o relógio.

Ora, não preciso ir muito longe para você já ter percebido que o autômato é a metáfora de Scorsese para o cinematógrafo ou o tal do projetor. Inclusive porque as engrenagens do autômato reproduzem o mesmo som de um projetor de cinema em funcionamento e, tanto o projetor quanto o autômato, fabricam suas imagens. Imagens que finalmente ganham vida depois que uma chave na forma de um coração põe o boneco em movimento. Para Scorsese a tecnologia básica do cinema é sempre a mesma, mas sozinha não consegue fazer a sua mágica. As engrenagens até que funcionam, mas sem coração, sem humanidade, o cinema não encanta, frustra. A chave para o cinema, independente da mudança de tecnologia, sempre será o coração humano.

No fim do século XIX e início do século XX houve um crescimento da ciência de forma espetacular, principalmente depois da revolução industrial. A Europa toda foi seduzida por um frenesi que se originou nas possibilidades infinitas que as máquinas criaram. Muitos cientistas se imaginaram e foram medidos como deuses criadores. Foi dessa época as principais obras literárias que expressaram o paradoxo com a ciência e as máquinas: “O médico e o monstro”, “Eu, robô”, “O homem bicentenário”, “Frankenstein”, “Homem elétrico”; etc. Foi a evolução e o desenvolvimento do mito do Golem da tradição folclórica judaica.

Dizendo de outro modo, o aspecto de mistério, de mágica do Golem, ainda está presente em qualquer máquina. Mesmo que saibamos como algo funciona, ainda existe uma dimensão de nossa ignorância que propicia fantasiarmos que algo mágico está dentro daquele objeto, como o ratinho de corda que aparece em uma cena do filme. Talvez sejam fantasias que herdados de nossos ancestrais e seu mundo encantado, onde tudo era mágico e sobrenatural.

Isso nos faz pensar que não é por acaso que o autômato do filme inspire tanta empolgação em Hugo e Mélies, e a máquina do cinema desperte em Scorsese a ideia de que cada filme é um Golem. Golens não podem mais ser controlados depois que se lhes dá vida. Uma obra deixa de ser do autor depois que este lhe dá a vida.

O psicanalista Pichon-Rivière, conhecido por suas contribuições na análise de grupo, mas pouco conhecido por sua crítica à arte, escreveu alguns textos que foram reunidos em um livrinho chamado “O processo de criação”. Nele o psicanalista genebrino (argentino por escolha) expõe a sua curiosidade para com o móbile. Mas porque o móbile? Porque nas artes visuais modernas o móbile é talvez o objeto mais simples e primitivo que causa o mesmo efeito de fascinação pelo movimento que qualquer máquina causa, como se aquilo estivesse vivo. Que me certifiquem a Psicologia e a Psicopedagogia que descobriram os efeitos do móbile no desenvolvimento dos bebês.

O móbile seria o esboço, a realização mais rudimentar do sonho do ser humano de encontrar ou criar uma máquina com um motor perpétuo. Hoje sabemos pelas leis da termodinâmica que isso é praticamente impossível. No entanto, o móbile, assim como o catavento, precisa apenas de uma brisa e, o mais importante, produz movimento sem o auxílio humano. Ora, e não é isso que o cinema faz? Quantas vezes estamos na sala de cinema e o que vemos é apenas o movimento (móbile) das imagens e nos esquecemos completamente que por trás de nós está um projetor e que na película está impressa o resultado de um trabalho complexo? Foi o grande pioneiro nessa arte do móbile, Alexander Calder (um de seus móbiles está exposto no MASP) que disse: “O universo é real, mas você não pode ver. Tem de imaginá-lo.”

Se pudéssemos psicanalisar Hugo a partir de Pichon-Rivière, poderíamos dizer que Hugo passa por um processo de redescoberta da figura de seu pai, ou aquele com o qual manteve o seu mais íntimo vínculo. A experiência de redescoberta pode ser angustiante ou gratificante. Diante dessa nova situação emergem os medos básicos, como o temor em abandonar os vínculos referenciais anteriores (ansiedade depressiva) e o medo do ataque (ansiedade paranóide). Talvez seja isso que fez com que Hugo passasse de uma identificação com o autômato para uma introjeção, ao ponto de ter um pesadelo em que ele próprio seria um autômato.

De acordo Pichon-Rivière, a introjeção aproxima-se da incorporação, que constitui o seu protótipo corporal. Traduzindo: é mais ou menos como quando você sai do cinema imaginando que é o herói que você acabou de ver em ação. No caso de Hugo a tensão é maior porque ele próprio se confunde com o autômato e com a figura do pai. O autor descreve que o indivíduo projeta nas diferentes áreas os vínculos do bem e do mau, numa situação de ambivalência. Razão porque mantém uma relação ambígua e de desconfiança com o passado e com o presente. A saída? Resignificar a partir do autômato (do cinema?). O boneco passa a ser o ponto de partida, mas também a ponte que liga o seu vínculo passado com os atuais vínculos que estabelece.

Enfim, assim como para Hugo o autômato é a máquina de sua criatividade, que lhe cura, o cinema é a máquina que cura tanto aquele que o faz (Scorsese) como aquele que assisti. Cinema é ludoterapia; um sério brinquedo do ser humano.

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