domingo, 26 de fevereiro de 2012

A DAMA NA ÁGUA


A DAMA NA ÁGUA

Título original: (Lady in the Water)

Lançamento: 2006 (EUA)

Direção: M. Night Shyamalan

Atores: Paul Giamatti, Bryce Dallas Howard, Noah Gray-Cabey, Jeffrey Wright.

Duração: 110 min

A fruição é uma benção e uma maldição. Benção porque permite a simples diversão, sem preocupações ou responsabilidades; é uma maldição porque permite igualmente a contaminação pelo senso comum e pelo olhar pouco atento. Quem vai ao cinema para assistir obras de certos diretores apenas pela fruição, nem deveria ir. É o caso de Shyamalan que, desde “Sexto Sentido”, fez com seus filmes fossem amados ou odiados. Odiados pelos que querem apenas diversão e tem preguiça de interpretar, amados pelos que se habituaram ao sentido ambíguo de seus roteiros.

Não é a primeira vez que saio do cinema ouvindo imprecações contra seus filmes com frases do tipo: “Que porcaria, não entendi nada”; “Nossa, que fim ridículo”. A partir de “Sinais”, esse assistente bobo-alegre insiste em acreditar que todo filme e que toda história só tem sentido se ele puder interpretar de forma literal. Se o que ele está vendo não for exatamente aquilo que ele realmente está vendo, nada mais é possível. Não lhe passa pela cabeça, nem mesmo com um mínimo de desconfiança, que o autor pode estar querendo dizer algo além das imagens que dançam diante de seus olhos. Isto me lembra o hipocondríaco que, acostumado com as cápsulas de seu remédio sempre da mesma cor, fica confuso e angustiado diante de cápsulas de outra cor. Nessa situação, a mudança de cor revela a sua verdadeira doença.

Depois de algumas obras, Shyamalan percebeu essa atitude de seus assistentes e fez um filme que os provocasse ainda mais. Foi esperto o suficiente até para incluir em “A Dama na Água”, logo no início, os incapazes: “Os homens esqueceram como ouvir”. E olha que muito possivelmente Shyamalan não está falando apenas de seu filme, mas de toda história que provoca a vontade de interpretar, compreender e, mais ainda, viver os mitos. E, entenda-se mitos aqui não como falsidades, mas como o que eles realmente são, ou seja, histórias grávidas de sentido, prenhes de símbolos universais do ser-humano.

Ouso afirmar que Shyamalan fez esse filme justamente para não fazer sucesso, exatamente para não ter grande bilheteria, pois, de outro modo, o seu próprio filme seria um fracasso. O fracasso do filme foi também o seu sucesso. Sim, eu sei, alguns devem imaginar que essa é uma hipótese ruim, no mínimo maluca. Mas explico. Por toda a narrativa fica claro que a história só pode ser compreendida por aqueles que são capazes de se tornarem novamente crianças ou se puderem ser despertados com uma sensação de “alfinetes e agulhas”. Ora, Shyamalan já sabia que pouca gente entenderia esse filme, que bem poucos sentiriam suas “agulhas e alfinetes” – o que torna o filme legítimo em sua tentativa de apontar como a maioria das pessoas está com a sua sensibilidade aos mitos embotada pelo processo civilizatório que exige verdades adultas, racionais e lógicas, para não dizer domesticadas por uma falsa seriedade. Como disse um outro crítico: para Shyamalan esse filme é uma declaração de princípios que indica como uma história deve ser contada. Shyamalan, nisso, exige que seu expectador acredite no que ele põe na tela simplesmente porque o acordo silencioso entre o expectador e a ficção não permite outra possibilidade. Não acreditar no que se está assistindo é negar o próprio cinema, é negar que uma história possa ser contada. Isso sim é um absurdo maior do que qualquer conto de ninar.

A narrativa do cineasta indiano, naturalizado estadunidense, é muito simples e segue outras narrativas de outras obras que ele realizou. Ele apresenta seus personagens no início, revelando como cada um deles não encontra sentido ou propósito claro para a vida. Como é dito no filme: “Ninguém sabe quem é, até que todos se envolvam”. Diante da catástrofe ou de evento negativo, cada personagem encontra a sua força interior e, por conseqüência, a sua identidade. Ou, nas palavras de Storie, a dama Narf: “Você tem uma finalidade. Todos os seres tem uma finalidade”. Ao encontrarem a sua identidade, são capazes de realizar atos heróicos e salvarem-se a si mesmos. Os heróis de Shyamalan são pessoas comuns, insossas e, talvez por isso, incomode tanto os que desejam grandes heróis em filmes de pastiche, com sucesso garantido.

O protagonista é Cleveland Hipp e, como a própria Dama Narf aprendeu em sua escola, Cleveland significa “terra ou país dos montanhas”. Shyamalan provoca duplamente seu expectador. Por um lado, ele indica que o tipo de escola que Storie frequenta pouco se preocupa com conteúdos formais e se concentra nos sentidos da vida – escola centrada na cultura imaterial e simbólica e não na cultura material e de produção. Afinal não é disso que o filme trata? Por outro lado, Storie mostra que um nome é carregado de identidade e sentido. Aliás, o nosso nome próprio já é um dos primeiros passos para começarmos a contar a nossa própria história e, por conseqüência, acharmos a nossa identidade. Nomes tem significados, assim como sobrenomes, e estão encharcados da cultura de nossos antepassados, de nossa ancestralidade.

Cleveland tinha perdido sua identidade com a morte de sua esposa e filhos. Não conseguia mais contar a sua história, por isso dizia que ninguém o conhecia no condomínio. Para continuar a ajudar as pessoas, como antes, pois tinha sido médico, tornou-se um zelador prestativo; tornou-se um “Quíron”, isto é, o centauro ferido que curava. Quíron, segundo a mitologia grega, foi o centauro que ensinou os principais heróis e foi grande amigo de Hércules. Foi adotado por Apolo, que lhe ensinou artes, música, poesia e outras ciências. Foi médico e astrólogo, unindo assim os saberes místicos com os saberes científicos. Ao ser ferido por uma flecha de Hércules, Quíron não morreu (a flecha de Hércules para qualquer outro centauto seria fatal), uma vez que era imortal, sendo um filho de um Titã (Cronos).

Cleveland só reencontra a sua identidade quando cuida de Storie, acredita nela e a cura. Cleveland reaprende a contar sua história na história de Storie – a gagueira era sinal de sua incapacidade de narrar – e se faz criança (a cena do sofá em que ele se faz parecer uma criança é hilária mas muito representativa). Ele, ferido, se cura porque Storie lhe salvou, ou melhor, recontar a “estória” de si mesmo lhe salvou. Há mais psicanalítico do que isso? Para acompanhar essa transformação é que surge o símbolo clássico da mudança: as borboletas.

Outro nome carregado de sentido é o da própria Dama Narf, “Storie”, que, como palavra aponta, significa “estória”. Veja que o termo que usei não foi “história” e sim “estória”, infelizmente em desuso na língua portuguesa. Enquanto “história” se aproxima mais do sentido historiográfico, que exige provas documentais e raciocínios científicos, “estória” se aproxima mais do sentido ficcional, que exige uma crença incondicional e voluntária, semelhante à da criança, que não pede provas do conto de ninar que lhe é contado. A história requer verificação; a estória requer fé. Cada um do condomínio deve entrar na estória de Storie para igualmente encontrarem a sua própria história. Em certo sentido Shyamalan está pedindo a mesma “fé” infantil ao telespectador.

A piscina onde Storie vive é um “buraco de Alice”. A diferença é que enquanto Alice entra no mundo fantástico do País das Maravilhas, Storie sai de seu mundo fantástico e entra no mundo real dos humanos. Dessa vez os humanos é que precisam entrar no mundo fantástico de Storie, mas sem sair de seu mundo real.

Sendo uma narf, Storie tem um caráter místico, típico dos elementais; uma fada ou elfa ligada aos poderes da natureza. Storie é o duplo de cada um de nós, que suscita um encontro com a nossa natureza mais íntima, selvagem e ancestral. E, como muitos seres místicos, ela tem forte apelo feminino. Apelo em que Shyamalan explora o trajeto psíquico da história do ser humano no culto da “Dama”. De acordo com o grande psicólogo das profundezas, Carl Jung, o culto da “Dama” poderia ser a atração pela figura arquetipal feminina que completa nossas almas, a “Sofia” dos gregos, a “Virgem-Mãe” dos católicos romanos, as divindades feminóides dos nossos antepassados. Ela desperta a libido na sua mais pura essência, entendendo que o significado da palavra “libido” etimologicamente quer dizer “experimentar um violento desejo”, e sofrer todas as suas conseqüências. É uma palavra ambígua, que serve tanto para nos remeter ao desejo da vida como ao desejo da morte. Os personagens do condomínio estão entre essas duas margens. O fato de Storie viver dentro de uma piscina, em um buraco cheio de água, reafirma a sua natureza mística, das mulheres-sereias. Além do peixe quase sempre representar em muitas culturas a reabilitação dos instintos primordiais, a deusa lua, em muitas mitologias, tem uma cauda de peixe e um dorso de mulher.

Vick Ran é o escritor que não conseguia mais escrever. Sendo uma espécie de duplo de Cleveland, precisa ter contato com Storie para reencontrar a sua identidade de escritor e continuar a história. Sem esse contato, a história não tem seguimento e a fantasia termina. Ver Storie é “ver” a sua história. É necessário coragem para isso (a palavra “vikram” na Índia significa “coragem”). Todavia, mais ainda, Shyamalan teve que demonstrar muita coragem para assumir que o escritor é ele próprio (Shyamalan atua como Vick Ran) e que o seu livro nada mais é do que um livro de receitas para se contar uma história que mude a seriedade adulta de nossa cultura, liderada por gente que se acha muito séria. Um livro que traz “opiniões sobre nossos problemas culturais e nossos líderes. Cultura e líderes que não ouvem mais”. Ele mesmo diz: “aqueles medos que bloqueavam minhas ideias, foram embora”; medos que todo contador de historias como Shyamalan tem. É por isso que o diretor sabe que a maioria não iria gostar de seu filme, de sua história. Na boca de Vick Ran se ouve: “Há coisas no livro de receitas que não vão gostar”. Storie diz que algo vai acontecer com o escritor: “Vão te matar”. Tenho certeza que muitos saíram do cinema com essa vontade.

Ou seja, Vick Ran não é só um duplo de Cleveland, mas de Shyamalan, e o seu livro de receitas é um duplo do filme. O diretor não poupou a metalinguagem e brincou com o destino de seu filme e de como seria recebido e criticado. Não por acaso o crítico de cinema é o único personagem odiado e morto. Shyamalan põe esse personagem em situações engraçadas e vexatórias, principalmente cometendo erros em suas críticas. A principal é quando acredita que pode sair ileso do ataque do scrunt (lobo) e não consegue. O oposto do crítico adulto sisudo, que compreende a narrativa de Shyamalan, é o menino que lê caixas de cereais. Outro oposto do crítico é o “militar” que, apesar de sério – “um homem que não tem segredo, cuja opinião é respeitada” – tentar reencontrar a sua natureza infantil e acreditar na sua parte na história.

O condomínio é um micro-universo, um espaço que se confunde com o mundo, com gente de todo tipo e hábito. Cada personagem vai encontrando o seu lugar nesse mundo, que aos poucos se torna fantástico e, para que isso ocorra, cada um também precisa acreditar que tem alguma função, algum propósito (tema caro a Shyamalan na maioria de seus filmes). O desafio é sair de um cotidiano limitador e sem sentido, da prisão da caverna de Platão (o condomínio tem o sugestivo nome de “cove” – “abrigo”) e entrar na história fantástica, ao encontro da verdade. É o que fazem as irmãs latinas que formam “o conselho” que, apresentadas logo no início do filme como medrosas, aparecem enfrentando o scrunt porque acreditaram em seus destinos. Novamente Storie tem a palavra: “o homem pensa que está só neste mundo. Não está. Todos estão conectados.”

“A chuva é metáfora da purificação e um novo começo.” Shyamalan põe essa fala na boca de Cleveland quando responde ao crítico de cinema porque é exatamente essa metáfora que ele utiliza no final do filme quando Storie é resgatada. É a metalinguagem sendo explicitada, revelando que o diretor está avisando ao seu espectador que seu filme é um manual (livro de receitas?) que ensina como uma história de ninar deve ser contada com todos os seus personagens e ingredientes.

Não só isso, Shyamalan espera que aquele que assista ao seu filme seja purificado, retome a sua voz interior e encare a vida como destino. Que retome a sua capacidade de fabular, pois é essa a função do filme: uma fábula que permita que cada um descubra o seu propósito. Remitologizar é acreditar, sem meio termo, na fabulação. E não me venham dizer que isso é coisa de simples diversão porque, em termos de história dos povos, de sentidos antropológicos, é exatamente essa fabulação remitologizante que permitiu que todo povo narrasse a sua história e o seu destino como únicos. Assim fez Israel com a produção de sua “historiografia” fabular que chamamos de Antigo Testamento; assim fez os povos americanos ao contar seus mitos fundantes, negados pela “civilização” européia; assim fez as próprias civilizações européias ao acreditarem que seus feitos e heróis eram únicos; assim faz cada um de nós porque acredita que está aqui por algum motivo.

Um comentário:

Beatriz disse...

Oi, eu achei sua resenha ótima, gostei muito desse filme enigmático, gosto de histórias que trazem esses mistérios. A Dama da água para mim é uma verdadeira busca de si, um encontro com nós mesmos. É uma pena que muitos vejam esse filme de forma superficial.