sábado, 19 de julho de 2008

Política e polícia

David Hume, filósofo escocês e empirista do século XVIII, estudioso da história a da política inglesa, tornou-se notório pelos conceitos que criou para compreendermos como se dá o conhecimento humano. Para ele, o conhecimento é baseado em um princípio que ele chamava de princípio da causalidade. Simplificando, nossa “mente” interpreta as experiências que temos a partir das memórias das experiências anteriores, ou seja, a partir de um hábito de causa e efeito. Por exemplo, se o pneu de um carro furar (efeito), imediatamente fazemos uma lista mental das múltiplas causas possíveis (prego, parafuso, defeito de fabricação, problemas com a válvula, etc.). Todas as causas são baseadas em experiências passadas da nossa memória ou da memória dos outros. Mas, igualmente, todas elas são baseadas em crença, pois todas, sem exceção, são possíveis. Para dirimir a dúvida, Hume, como bom empirista, advoga o princípio da verificação ou, no caso do pneu, verificar a causa verdadeira em um borracheiro. Verificada a causa real, as outras elencadas são anuladas.

Em parte, com esse hábito, o conhecimento ganha um padrão para interpretar as novas experiências sem grandes sustos ou novidades. Por outro lado, esse hábito nos conduz a “acreditar” que o mesmo modelo de interpretação de uma experiência, serve para todas as experiências, o que pode, em algum momento, ser equivocado ou falso. Isso ocorre principalmente quando a nossa mente faz associações entre eventos parecidos. Utilizando novamente o exemplo do pneu, se o furo é provocado por prego no primeiro dia, também por prego no segundo dia, no terceiro, quarto, quinto, até o décimo dia, nossa mente vai associar ou ligar um evento com o outro e, se o pneu furar de novo no décimo primeiro dia, automaticamente, interpretaremos como sendo prego mais uma vez. Porém, a verificação pode revelar que não foi prego nesse dia, mas um parafuso. Logo, a mente cria um padrão para explicar o pneu furado que, em um determinado momento, pode não funcionar.

Com o hábito de associar eventos aparentemente semelhantes, Hume apontou como podemos nos equivocar em muitas situações. Numa situação como um pneu furado tantas vezes, nada a temer, a não ser acreditar que estamos passando por uma grande onda de azar. Mas, no caso de situações e eventos que envolvam vidas e experiências perigosas, acreditar que uma mesma causa explique o efeito atual, pode gerar um padrão que, sem verificação ou informações mais claras, invariavelmente redunda numa tragédia.

É por isso que Hume era muitas vezes visto como um pessimista, um cético de “carteirinha”. Não gostaria de ser pessimista como ele, porém, se o pessimismo é necessário para ser realista, advogo o tal. Disse em outras ocasiões e reintero: o país acabou de iniciar a sua redemocratização e, possivelmente, nossa geração não irá ver um país muito diferente. Não é um exercício de vidência, tão somente um exercício de leitura da repetição, seguindo a linha do bom ceticismo escocês. Essa canalhisse escancarada em nosso país, não é nova e nem será a última. Faz tempo que a política é uma experiência eterna de "dejá vu", de novela que já vimos. Mas não é só a política, senão a maioria de nossas instituições está fadada ao vício, ao hábito maldito. Ou achamos mesmo que é a primeira vez que banqueiros penhoram o país e a polícia mata inocentes?

Depois da notícia da morte de João Roberto, irmão e mãe metralhados dentro de um carro no Rio de Janeiro, comentei com meus alunos que não foi "erro" ou falta de treinamento da polícia. Não acredito, sinceramente, que ela esteja despreparada ou destreinada para fazer uma abordagem daquela. Ora, qualquer menino de 9 ou 10 anos que jogue vídeo-game sabe quando e em quem deve “atirar”, sem nenhum treinamento. O que possivelmente ocorreu é que a polícia já fazia esse tipo de abordagem (eu mesmo presenciei uma faz um mês em um município do interior do Estado de São Paulo) e, até aquele momento, estava "dando certo". Dessa vez não deu. Diante de um Estado despreparado a polícia teve que se "reinventar" e precisou criar um padrão de "esquadrão da morte" para enfrentar uma bandidagem preparada e organizada. Mate-se primeiro e depois se averigua. É uma ação baseada na crença que, por sua vez, vem da repetição, da memória de experiências anteriores. Não há verificação, não há exercício cético, de questionamento. Numa ação que exigia rapidez, se fez o que estava à mão, ou melhor, se fez a partir do que estava na cabeça. Possivelmente não foi a primeira vez que esses policiais fizeram isso. Daí que a culpa não pode recair apenas sobre eles.

Gostaria de ter minha boca calada, minha língua queimada e ter errado feio, mas, eis que na semana seguinte um administrador, refém de seqüestro, é morto com abordagem semelhante. Na seqüência, vem a enxurrada de notícias parecidas. Gostaria que o caso do menino fosse exceção, mas para nosso desespero, e desespero da família do administrador, é regra. Como nos casos repetidos da política, assim como nos casos da polícia, veremos todos os dias a repetição das notícias, das catástrofes, da dor, da morte (existencial ou real) por encomenda. E, só por curiosidade, alguém já se perguntou por que quando sai uma notícia que vende bem, logo em seguida aparecem outras semelhantes? Não são novidades, estavam apenas esperando sair no jornal, na mídia. A política não é novidade, a polícia também não. A repetição do mau hábito é a regra. O padrão é estabelecido por baixo, pela mediocridade. O padrão de policiamento e da política do país, mexidos no mesmo caldeirão da incompetência, resultam no veneno mais amargo e mortal que poderíamos beber.

Não me assusto mais. Fico com a reflexão de Karl Jung (Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. "O incesto e as pervesidades não representavam para mim novidade dignas de nota (...). Pertenciam, como a criminalidade, ao resíduo negro que estragava o gosto da vida, pondo-me diante dos olhos, com demasiada nitidez, a fealdade e estupidez humana. Que couves tirassem seu viço do esterco era para mim um fato natural. Não encontrava nisso qualquer esclarecimento confortante. Só as pessoas da cidade parecem ignorar tudo acerca da natureza e do estábulo humano (...)".


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