2001 (1h20min)
Direção - Richard Kelly
Jake Gyllenhaal, Maggie Gyllenhaal, Drew Barrymore, Noah Wyle, Jena Malone, Mary McDonnell, Patrick Swayze, Seth Rogen, Holmes Osborne, Daveigh Chase, Katharine Ross, Ashley Tisdale, James Duval.
Donnie Darko
é um filme de referências, assim como “Matrix”, lançado dois anos antes. São
puzzles que exigem que sejam assistidos mais de uma vez para serem montados.
Ainda assim sobram muitas peças sem encaixar e, por isso mesmo, são tão abertos
a múltiplas interpretações. Talvez essa seja uma das razões que explicam porque
nunca me aventurei a escrever sobre “Matrix”; mas vou me arriscar a dizer algo
sobre Darko, tentando não cair na superinterpretação.
Em primeiro
lugar é preciso ressaltar: esse filme conseguiu chegar ao patarmar de um clássico
ou Cult com baixo orçamento e filmado em apenas 28 dias. Richard Kelly, além
disso, conseguiu fazer um roteiro bem amarrado e não ser seduzido pelo
didatismo; duas proezas raras de se encontrar nos atuais filmes de Hollywood.
Adolescência
Movies-teen em
geral tratam adolescentes como seres abobalhados, preguiçosos, baderneiros e
extramamente simplistas na forma como encaram a vida. Não que Donnie Darko fuja
das incongruências da idade, mas trata um adolescente com uma profundidade
pouco vista no cinema. Abuso ao dizer que Darko é o personagem mais lúcido
entre personagens perdidos num maniqueísmo de dar dó. Kelly chega a ser irônico
ao criar uma “carola” moralista como Miss Farmer, que trata seus alunos
justamente como uma fazendeira, e o Dr. Cunning, que divide o mundo em medo e
amor. Igual dualismo simplório é visto nos adultos que ficam na dúvida em
escolher na política entre candidatos conservadores e liberais.
Darko passa
pelas contradições e problemas típicos dos adolescentes (melancolia, raiva,
rebeldia, primeiro namoro, briga com os colegas de escola, empatia com
professores e antipatia por outros) e, apesar de parecer fugir de sua
responsabilidade em amadurecer, sabe, como qualquer outro adolescente, que o
tempo está se esgotando e decisões precisam ser tomadas. A busca por sentido e
identidade na vida de um adolescente aparece nesse filme à semelhança do que
ocorre em outros filmes que protagonizam uma personagem como “Preciosa” ou “Alice
no País das Maravilhas”.
Vários são os
personagens adolescentes estereotipados: meninas “inocentes” que dançam
sensualmente, meninos que brigam por nada, festas, bebidas, fortões e
excluídos, como é o caso de Cherita, a gordinha que recebe de Darko um olhar de
piedade.
Morte
A morte é
possivelmente o tema obsessivo do filme e representada em diversos momentos.
Vejamos:
1. As canções da trilha sonora,
várias delas de 1988, ano em que “o mundo vai acabar”, trazem em suas letras
não só trechos que são visíveis no roteiro do filme como o tema do destino, intimamente
ligado à morte e o tempo.
2. Em termos filosóficos, a
morte é tratada também pelo tema da solidão. Nesse caso, devemos suscitar, mas
não explicar, o existencialismo de Sartre que elucidou o quanto estamos sós no
mundo, abandonados em busca de sentido. A morte é o limite desse abandono
existencial entre o sujeito e o mundo.
3. Também é filosófico (eu
diria um pouco esotérica) o conceito baseado na experiência da Sra Roberta
Sparrow (a Vovó Morte) acerca do tempo no livro que ela escreveu: “A filosofia
da viagem no tempo”. Aliás, ela corrobora com Sartre quando cochicha no ouvido
de Darko: “Cada criatura na Terra morre sozinha”.
4.
Sem dúvida uma referência fundamental para entender o filme é o trabalho
que a professora de literatura pede aos alunos baseado no livro de Graham
Greene, “Os destruidores”. Ele foi escrito em 1954 e fala sobre adolescentes que destroem uma casa de 200 anos que
sobreviveu a Blitz nazista (do alemão “relâmpago”); bombardeio que aconteceu na
Grã-Bretanha entre setembro de 1940 e Maio de 1941. O plano dos adolescentes,
liderado por um deles, era destruir a casa de dentro para fora e então demolir
a estrutura que sobrasse no exterior. Darko interpreta corretamente, conforme fazem os
críticos literários, que ao destruírem essa casa, estão ao mesmo tempo criando.
Trata-se de uma clara referência sobre aquilo que ele mesmo iria fazer para
mudar a história dos outros e de si mesmo. Ao inundar a escola (destruição),
conhece sua namorada (criação); ao incendiar o anfiteatro do Dr. Cunning
(destruição), ajuda a revelar a pedofilia do doutor falsidade (criação); e por
fim, ao voltar no tempo e permitir que uma das turbinas da aeronave caia sobre
seu quarto e morra (destruição), salva sua namorada e aproxima os personagens
(criação). É a velha fórmula do ciclo da vida: a semente tem que morrer
(destruição) para que possa brotar (criação). Adolescentes são assim.
5.
Só quando o filme
termina é que ficamos sabendo que o coelho-monstro é na verdade uma fantasia
usada por Frank (Frankenstein que ganhou vida pelas alucinações de Darko?) no
Dia das Bruxas, dia do fim do mundo. O coelho, um animal que aparentemente
invoca afetividade e pena, torna-se uma máscara assustadora, semelhante a uma
caveira, uma caveira de morte. Inclusive, Darko, ao avistar o carro vermelho de
Frank, quando ele e Gretchen, sua namorada, estão sendo atacados, diz que vem
chegando o “nosso salvador”. Possivelmente uma alusão messiânica a morte de Darko
e a salvação de Gretchen. Talvez isso estivesse em seus planos. Nesse caso, ele
muda o destino.
6.
A própria Gretchen
avisa seu fim trágico quando diz: “Acho que algumas pessoas já nascem com a
tragédia no sangue.”
7.
Darko usa nesse
dia uma fantasia de esqueleto, prenunciando seu sacrifício.
8.
O buraco de minhoca
conduz Darko até uma pistola. Acredito que ele deveria ter usado a pistola para
que o final trágico com sua namorada não acontecesse, mas ao escolher não
usá-la, ele mudou o seu destino, à semelhança do que vemos no filme “Minority
Report”.
9.
O close na
espiral pintada na turbina do avião talvez signifique justamente o ciclo do
tempo marcado pela vida e morte, ou a forma real como o tempo é percebido, ou
seja, não só na sua identificação mais usual e linear de passado, presente e
futuro, mas como passado que se repete no presente e permite saber o futuro. O
tempo cíclico é a “máquina do tempo” dos ancestrais.
10. Uma cena no cinema aparece o crepúsculo e um relógio,
sinais e metáforas da morte.
11. A “tentação” de Darko em fugir da morte é refletida
nos letreiros do cinema em filmes como “The Evil Dead” (Uma Noite Alucinante) e
“The Last Temptation of Christ” (A Última tentação de Cristo).
Ciência
Não podemos fixar um gênero apenas para
esse filme, mas, uma coisa é certa, podemos considerá-lo em muitos momentos uma
ficção científica. O mote é simples: situações extraordinárias são explicadas
cientificamente:
1.
Darko quer
modificar o destino e controlar a morte ao encontrar uma explicação científica sobre
como viajar no tempo. Por isso a citação dos buracos de minhoca, a conversa
sobre física quântica com seu professor e a referência a Stephen Hawking.
2.
Darko aconselha
Gretchen a escrever sobre antissépticos para um trabalho acerca das maiores
invenções da história que beneficiaram a humanidade.
3.
Miss Farmer
carrega um livro sobre comportamento.
4.
Em um momento
descontraído, Darko dá uma explicação científica para seus colegas da escola
demonstrando porque os smurfs não podiam transar.
5.
Darko cita o
filme “De Volta para o Futuro”, que está repleto de referências científicas
sobre viajar no tempo e, principalmente, sobre o paradoxo temporal – problema que
Darko resolve ficando em seu quarto esperando a morte.
6.
Darko e Gretchen
fazem um trabalho para a escola com explicações científicas sobre “implantar”
boas memórias na mente de bebês através de um par de óculos com imagens
agradáveis. Descobrem, porém, que o passado não pode ser apagado da memória.
7.
Como o filme tem
uma cronologia confusa e não é sincrônico, lembrando inclusive o filme “Amnésia”,
que começa pelo fim, uma boa parte dessa diacronia é explicada por um Darko
também confuso e doente.
8.
A professora de literatura diz a Darko sobre uma
palavra, “cellar door” (traduzido como "porta de adega”, mas também
poderia ser “porta do porão” ou “alçapão”). Trata-se de uma palavra considerada
em inglês como “fono-estética”, ou seja, tida tanto por Edgar Allan Poe quanto
por J. R. R. Tolkien como a mais bela palavra sonoramente falando. Darko a interpretou
como sendo um portal do tempo. Em termos de referência, o filme parece nos
remeter claramente à “Alice no País das Maravilhas”, que encontra um outro
mundo quando entra em um buraco (o seu buraco de minhoca). Como Alice, Darko
segue o seu coelho. Portais desse tipo são comuns nas mitologias e nas
histórias de fantasia como em "O leão, o guarda-roupa e a feiticeira" de C. S.
Lewis.
O mundo acaba, mas apenas o de Donnie
Darko. Como Alice, que tem um coelho branco (“Matrix” também brinca com essa
referência) que lhe aponta o tempo todo um relógio, como querendo apressar o
amadurecimento da menina, Darko também tem um coelho pressionando-o porque o
tempo está acabando e deve realizar o seu sacrifício de anti-herói. O coelho de
Alice é eufemizado, diluído, domesticado; o coelho de Darko é monstruoso,
contundente, selvagem. Seria a releitura da fábula de Alice em um adolescente dos
tempos modernos, que pede não só o amadurecimento de seus adolescentes mas
também a sua morte?
3 comentários:
Sensacional o texto.
Obrigado!
Donnie darko usa uma fantasia ridícula de homem, ou melhor, de esqueleto humano. Há uma dualidade entre o coelho e suas orelhas significarem os chifres de satanás e Donnie ser o messias de um mundo tangente.
achei incrível o seu ponto de vista, mudou minha visão sobre oque era um simples filme...
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