sexta-feira, 23 de maio de 2008

Sinais

Sinais
Título Original: Signs
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 107 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2002
Estúdio: Touchstone Pictures / Blinding Edge Pictures
Distribuição: Buena Vista International
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Produção: Frank Marshall, M. Night Shyamalan e Sam Mercer
Música: James Newton Howard
Fotografia: Tak Fujimoto
Efeitos Especiais: Industrial Light & Magic
Elenco
Mel Gibson (Graham Hess)
Joaquin Phoenix (Merrill Hess)
Rory Culkin (Morgan Hess)
Abigail Breslin (Bo Hess)
Cherry Jones (Oficial Paski)
M. Night Shyamalan (Ray Reddy)
Patricia Kalember (Collen Hess)
Ted Sutton (SFC Cunningham)


Existe algo mais antigo na propaganda do que a "mentira"? Foi pensando nisso que saí do cinema depois de assistir ao espetáculo distribuído pela "Buena Vista International". Nada mais mentirosa do que a propaganda que antecedeu à estréia do filme. Venderam uma espécie de reprise do Independence Day e o que ofereceram foi na verdade uma espécie de A guerra dos mundos.
Mas está enganado quem pensa que eu estou reclamando. Ao contrário disso, apesar de não ter minhas expectativas supridas, a surpresa foi agradabilíssima. Em lugar de explosões ensurdecedoras e uma história fraca, me deparei com uma história muito bem contada e personagens que definitivamente deram o nó final à trama.
Pensando bem, só encontramos narrativas assim tão bem desveladas na literatura, ou seja, naquela arte que é base para as narrativas representadas pelas linguagens modernas, como a do cinema, por exemplo. Nesse sentido, o cinema deve muito à literatura algumas de suas estratégias de linguagem como o enquadramento, o close, o flash back etc; mas é incrível como isso também vale para as boas histórias baseadas em personagens que captam nossas angústias. Como bem disse Henry James: "o que é um personagem senão a determinação do incidente? O que é um incidente senão a ilustração do personagem?" Diante de um cinema que substituiu boas histórias e boas personagens por muitos músculos e efeitos especiais, a frase de James é assustadoramente atual.
Mas o que um escritor norte-americano, nascido em meados do século XIX, tem a ver com um filme do início do século XXI? Henry James obviamente jamais imaginou tal coisa, isto é, que ao escrever sobre a arte da ficção no romance, ela igualmente serviria para a linguagem do cinema. Tendo nascido em 1843 e falecido em 1916, provavelmente não teve muito tempo de pensar nisso. Ainda que o cinema tenha dado os seus primeiros passos no início do século XX, não acredito que James se interessasse tanto assim pelo tema.
Por outro lado – curiosamente as melhores histórias em Hollywood são, em sua maioria, filmadas por diretores estrangeiros – acho que Shyamalan sabia da importância de uma boa narrativa baseada em boas personagens. Quer dizer, talvez ele nunca tenha lido uma única linha de James, mas sabe o que é contar uma história. Melhor dizendo, seguindo a tradição do próprio Henry James, sabe o que é contar uma "estória". Até porque não é a primeira vez que esse diretor faz isso (veja Sexto Sentido e Corpo Fechado).
"Tropecei" em James quando estava pesquisando sobre o conceito de ficção na literatura. Caiu em minhas mãos por um acaso (nome que dou à minha ignorância), uma de suas principais obras teóricas, isto é, A arte da ficção, que ele escreveu em 1884. Nela encontrei a enumeração do prolífero trabalho do escritor. Mas uma obra em especial chamou-me a atenção, e que se denomina A volta do parafuso, um romance curto de ficção fantástica, devedor dos melhores contos de terror que já tive a oportunidade de ler.
Li a primeira parte de A volta do parafuso em uma edição já "antiga" dos anos 70 (estranhamente traduzida como "A outra volta do parafuso"). Foi o suficiente para dar água na boca e sentir-me culpado por não ter ainda achado tempo para ler o restante. Linguagem deliciosa, refinada, mesmo em português. James encantou-me com sua capacidade de transportar o leitor para o tempo de sua narrativa. Ele tem um estilo desconcertante, com frases intercaladas, muitas metáforas e, dando ao leitor a impressão de que por trás das descrições que faz, um fio narrativo carrega a nossa imaginação até o ponto onde ele quer nos levar. A sensação é que a maneira refinada com que escreve é para conduzir o leitor até ao limite da realidade com a ficção. Aliás, cara teoria literária à James.
Quando se assiste aos filmes de Shyamalan, a sensação é semelhante. Tanto faz ver qualquer um de seus mais famosos filmes, a narração é transportada para a tela num enredo que prende a atenção mais pela curiosidade de sabermos o final da história do que pelos 10 minutos de ação que a maioria dos filmes usam para enredar a atenção do assistente. Cada personagem prepara o telespectador para suas futuras ações. Cada detalhe se junta aos personagens para que o desfecho seja triunfante. Por isso, em se tratando de Shyamalan, ele não espera muito para mostrar os primeiros "sinais" da resolução da trama. Seja em Sexto Sentido, Corpo Fechado ou Sinais, Shyamalan gosta dos finais grandiosos, das histórias que terminam de forma surpreendente. Assim como James, o diretor indiano nos leva ao limite da realidade com a ficção, de modo que muitas vezes nos sentimos uma das suas personagens.
Em Sinais, a história se passa no condado de Bucks, Pensilvânia, onde vivem, numa fazenda, junto a uma plantação de milho, Graham Hess (Mel Gibson), com seus dois filhos, Morgan (Rory Culkin) e Bo (Abigail Breslin), além de Merrill (Joaquin Phoenix), seu irmão. Graham perde a fé e evita ser chamado de padre, pois sua mulher, Colleen (Patricia Kalember), foi morta ao ser atropelada por Ray Reddy (o próprio M. Night Shyamalan). Repentinamente a família descobre misteriosos e gigantescos círculos que surgem em sua plantação, confirmados pela televisão como sendo feitos por extraterrestres.
O filme começa mostrando um porta-retratos com a família unida e feliz, em nada lembrando a catástrofe que logo se abaterá sobre eles. Mais ou menos como no filme Retratos de uma obsessão, estrelado por Robin Williams, a fotografia revela apenas o que é agradável, sem se dar conta das grandes e pequenas desventuras que todo santo ser humano sofre todo dia. Alguém já viu algum álbum de fotografias de família que não tenha apenas momentos felizes, festas, viagens e sorrisos? Logo, o início marca não só o que espera aquela família no continuar da história, como deixa o primeiro vestígio, o primeiro sinal de ser ela o centro da narrativa de Shyamalan.
Da mesma forma que a mensagem ambígua do porta-retratos, Morgan, o filho de Graham, quando vê um sinal deixado no milharal, diz: "Acho que foi coisa de Deus". Pronto, aí está o inconfundível carimbo de cunho religioso de Shyamalan: de cara ele chama a atenção de que o filme não é tanto sobre a invasão de ETs, mas sobre os "sinais da vida", sobre coisas que não entendemos exatamente porque estão lá, mas que de algum modo servirão para alguma coisa, de alguma forma sinalizarão um propósito.
Essa marca de Shyamalan fez-me lembrar de dois escritores. O primeiro nascido na Alemanha, Herman Hesse, que teve um contato muito próximo com a terra de Shyamalan, a Índia, e que, por causa disso, deixou em seus livros o peso da filosofia oriental. Na literatura, chamam os romances escritos por Hesse de romances de formação do espírito. Nesse sentido, Shyamalan também fez um filme de formação do espírito, que fala à alma mais do que à adrenalina.
O segundo escritor é João, denominado de “o apóstolo amado de Jesus”. Supondo que seja ele mesmo o autor do quarto evangelho, fica clara em sua teologia a idéia de que os milagres de Jesus são como "sinais", isto é, não como milagres em si, apenas para socorrer alguém, mas sinais de que o Cristo veio mostrando poder contra as forças malignas. Tudo de acordo com a estrutura mítica helenista que revela a existência de três regiões que compõe a luta do bem contra o mal: o céu (acima), a terra (no meio), e o inferno (em baixo). Nesse caso, a terra é o palco de visitação das forças celestiais e infernais. O Jesus do evangelho joanino faz sinais indicando que as forças celestiais estão presentes e em ação contra as forças infernais; apontam sempre para algo mais além. Exemplo: Jesus multiplica os pães e peixes e logo em seguida prega que ele é "o pão da vida". O sinal da multiplicação apontou, dessa forma, para o Cristo que alimenta.
Tendo esses dois escritores em mente, podemos dizer que Shyamalan dá conta de nos avisar, logo no começo do filme, suas intenções. É por isso que não devemos ficar decepcionados, se em nenhum momento as imagens mostram grandes cenários e locações. Tudo se passa no condado e, o que acontece ao redor do mundo, só pode ser visto pela televisão. Genial para quem não quer falar sobre ETs, mas sobre sinais.
Mas os sinais que nos devem chamar a atenção e que darão o nó final à trama (também aparecem no início do filme), são os "defeitos" ou "imperfeições" presentes nas biografias das personagens. Cada uma delas tem um problema, uma limitação. Bo, a filha de Graham, acha que toda água que lhe servem está contaminada, espalhando, por causa disso, copos d´água por toda a casa. Morgan, o filho de Graham, tem crises de asma, principalmente, quando sob tensão. Merrill, o irmão de Graham, é recordista de batidas fortes com o taco de baseball (strike out), isolando suas bolas para fora do estádio. O problema é que isso lhe custou a permanência em qualquer time. Afinal quem iria querer um jogador que não sabe bater na bola de outro jeito? Por último, Graham é um sacerdote que perde o que mantinha a família segura: a fé.
Nas últimas palavras de Colleen (esposa de Graham), antes de morrer, é quando os "defeitos", ou melhor, os sinais serão unidos para a salvação da família contra as forças malignas dos ETs. Apenas no final Graham entende as derradeiras palavras da esposa: "veja; pode bater". São palavras sinalizadoras, palavras que impulsionam Graham a "ver" a situação, a perceber que o momento de maior crise é também o momento de maior superação. "Bater" significa a potência do golpe que Merrill deveria desferir no oponente fazendo-o cair. Logo em seguida, entra o "defeito" de Bo em ação, pois sobre o ET cai um dos copos de água, elemento mortal para sua adaptação ambiental.
O sinal mais forte, aquele para o qual todo o filme se converge, acha-se no paradoxo de um religioso que perdeu a fé. É aqui que Shyamalan se sente mais à vontade para filosofar, utilizando a boca de Graham para tal: "As pessoas se dividem em dois grupos, quando passam por algo de sorte. O grupo número 1 vê como mais do que sorte, mais do que coincidência. Eles vêem como um sinal, evidência de que alguém está cuidando deles. O grupo número 2, vê como pura sorte, um acaso feliz." "Você deve se perguntar que tipo de pessoa você é. Você é do tipo que quando vê sinais, vê milagres? Ou você acredita que as pessoas dão sorte? Ou será que coincidências não existem?"
Graham precisa dar respostas a essas questões, quando sua fé é testada no momento em que seu filho tem uma crise de asma, exatamente quando um ET invade a casa e borrifa um veneno fatal em suas narinas. O padre, segurando o filho no colo, pela primeira vez, depois de anos, reza. Como que resmungando um mantra, repete para si mesmo que o veneno não pode ter infectado seu filho, pois acredita que finalmente a crise de asma tinha um propósito: fechar seus pulmões contra a morte.
De certa forma, o filme é um paradoxo que vai de encontro à vida moderna, que bate de frente com ela: como limitações, imperfeições podem contribuir para a felicidade? Ou, se pudermos ir mais fundo, o filme coloca em xeque a mania burguesa e moderna: de que, para ser feliz, tudo deve estar em ordem. Contra a visão linear e cartesiana da vida, expressa principalmente no modo de vida ocidental, o filme revela que nem só de triunfos vive o homem. Contra a "sabedoria" (ciência?) que se desenvolveu a partir da concepção do evolucionismo e da escavação por patologias, a história de Shyamalan nos faz pensar. Aí não há Freud que resista.
Não, os grandes sinais não estão nos grandes eventos, nas grandes mudanças históricas, nos livros de ciência que, conforme Merrill, deveriam ser mudados. Nem tão pouco nos triunfalismos que alimentam uma sociedade viciada em sucesso, mas, estão nos acontecimentos simples da vida, nas crises do dia-a-dia, nos defeitos e imperfeições pessoais. É o lema existencial: "antes de existir o mundo, eu existo".
06/2003

Além da Linha Vermelha(The Thin Red Line, EUA, 1998)

Gênero: Drama/Guerra
Duração: 170 min
Distribuidora: CIC
Produtora(s): Geisler-Roberdeau, Fox 2000 Pictures, Phoenix Pictures
Diretor: Terrence Malick Roteirista: Terrence Malick
Elenco:Sean Penn, Adrien Brody, James Caviezel, Ben Chaplin, George Clooney, John Cusack, Woody Harrelson, Elias Koteas, Jared Leto, Dash Mihok, Tim Blake Nelson, Nick Nolte, John C. Reilly, Larry Romano, John Savage, John Travolta, Arie Verveen, Kirk Acevedo, Penelope Allen, Benjamin Green, Simon Billig, Mark Boone Jr., Norman Patrick Brown, Jarrod Dean, Matt Doran, Travis Fine, Paul Gleason, David Harrod, Don Harvey, Kengo Hasuo, Ben Hines, Danny Hoch, Robert Roy Hofmo, Jack, Thomas Jane, Jimmy Xihite, Polyn Leona, Simon Lyndon, Gordon MacDonald, Kazuki Maehara, Marina Malota, Michael McGrady, Ken Mitsuishi, Ryûji Mizukami, Larry Neuhaus, Taiju Okayasu, Takamitsu Okubo, Miranda Otto, Kazuyoshi Sakai, Masayuki Shida, John Dee Smith, Stephan Spacek, Nick Stahl, Hiroya Sugisaki, Kouji Suzuki, Tomohiro Tanji, Minoru Toyoshima, Terutake Tsuji, Steven Vidler, Vincent Wild, Todd Wallace, Will Wallace, Joe Watanabe, Simon Westaway, Daniel Wyllie, Yasoumi Yoshino, John Augwata, Joshua Augwata, John Bakotee, Immanuel Dato, Michael Iha, Emmunual Konai, Stephen Konai, Peter Morosiro, Amos Niuga, Jennifer Siugali, Carlos Tome, Selina Tome, Charlie Beattie, Kick Gurry, Lukas Haas, Shawn Hatosy, Randall Duk Kim, Darrin Klimek, Donal Logue, David Paschall, Jace Phillips, Bill Pullman, Felix Williamson
Compositor: Hans Zimmer

Que guerra é essa no seio da natureza? Por que a natureza luta com ela mesma?

Talvez todos sejam parte de uma grande Alma, faces do mesmo homem, um grande Ser. Todos buscando sua própria salvação, como um carvão tirado do fogo.

Você é correto, bondoso? Sua confiança se baseia nisso? É amado por todos? Saiba que eu era também. Acha que sofrerá menos porque amava a bondade, a verdade?

Este grande mal, de onde ele vem? Como ele penetra o mundo? De que semente, de que raiz ele cresce? Quem está fazendo isto? Quem está nos matando? Roubando nossa vida e nossa luz? Zombando de nós com a visão do que poderíamos conhecer?

Nossa ruína beneficia a Terra? Ajuda a grama a crescer, o Sol a brilhar? Este mal também está em você? Já passou por isto?
Nada nos fará esquecer, todas as vezes que recomeçarmos. A guerra não enobrece os homens, transforma-os em cães, envenena a alma.

Amor, de onde ele vem? Quem acende esta chama em nós? Nenhuma guerra pode apagá-la, conquistá-la. Eu era um prisioneiro, você me libertou.

Nós éramos uma família. Tivemos que nos separar. Agora nos voltamos um contra o outro, um no caminho do outro. Como perdemos a bondade que nos foi dada? Deixamos escapar, a dispersamos descuidados. O que impede que vençamos, que alcancemos a glória?

Um homem vê um pássaro morrer e só vê a dor. Mas a morte tem a palavra final. Ela ri dele. Outro homem vê o mesmo pássaro e sente a glória, sente algo sorrindo nele.

Por que ficamos juntos? Quem eram vocês com quem eu vivi, com quem caminhei? O irmão, o amigo. A escuridão da luz, a inimizade do amor, são obras de uma mente, traços do mesmo rosto. Minha alma deixe-me penetrar em você. Veja por meus olhos, veja as coisas que fez. Todas as coisas brilhando.

Filosófico? Poético? Pois se trata de alguns aforismos ou vozes internas (pensamentos em voz alta) que podem ser encontradas no filme Além da Linha Vermelha de Terrence Mallick, que ficou pelo menos 20 anos coletando imagens para que pudesse fazer sua reestréia no cinema. Neste filme, de forma excelente fez o seu protesto contra a idiotice das guerras usando como pano de fundo a batalha de Guadalcanal na Segunda Guerra. Resultado? Um “Urso de Ouro” e 7 indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor.
Pesado, denso, tomadas lentas, muitas vozes internas, é preciso paciência e muita atenção para não perder a relação das cenas com a narrativa. Aliás, o soldado Witt (James Caviezel) é responsável pela narrativa e pela maior partes desses pensamentos em voz alta que lemos acima.
Entretanto, você pode estar se perguntando: Por que um filme de 1999, denso e que nem a TV se importou? Explico minha experiência: Foi numa Quarta-feira, resolvi assistir ao filme O Pianista, que também se tratava de uma narrativa passada em plena Segunda Guerra, com a diferença de que o pano de fundo era o gueto de Varsóvia. Qual foi minha surpresa quando vi o ator Adrien Brody (ganhador do Oscar 2002 de melhor ator) como o protagonista na pele do judeu Wladyslaw Szpilman. Olhei aquele rosto esquálido e, como um raio, lembrei: Além da Linha Vermelha. Depois pensei: Mas afinal, o que ele fez neste outro filme de guerra? Só me lembro do rosto!
Depois que assisti O Pianista, resolvi “ressuscitar” as imagens já apagadas em minha mente do filme Além da Linha Vermelha. Outra surpresa: Brody não diz uma palavra sequer neste filme, mas não sei exatamente porque, consegui lembrar-me de seu rosto. Será que meu inconsciente ficou marcado com as cenas melancólicas de Guadalcanal? Não importa. Importa que redescobri essa obra prima que grita bravamente contra a burrice das guerras. Seu maior triunfo foi realizar isso questionando sobre a morte, em todas as sua sutilezas.
A genialidade de Mallick ao tratar o tema se revela em suas colagens de narrativa com cenas que muito possuem de simbólicas. Exemplo fica logo no início do filme quando, antes da voz interna do soldado Witt (que diz: “Que guerra é essa no seio da natureza?”), aparece um crocodilo descendo às águas esverdeadas de Guadalcanal. De certa forma, a cena dá o tom imaginário que acompanhará todo o filme: a morte é predadora.
Em seguida, outra tomada simbólica: habitantes locais, “selvagens” esquecidos naquele mundo perdido e distante, jogam o “Cachangá”. Quem conhece, sabe que essa brincadeira é acompanhada da seguinte canção: “Escravos de Jó jogavam o Cachangá, tira, põe, deixa ficar, guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá.” Jogo da morte, entre guerreiros que lutam uma guerra insana? Guerreiros que sucedem um após o outro, que morrem um depois do outro, sempre e sempre? Talvez, mas na parte final do filme o sargento Welsh (Sean Penn) deixa escapar a essência do mesmo jogo numa bela oração: “É tudo uma mentira. Tudo que vemos e ouvimos. Tantos são enviados. Não param de chegar, um após o outro. Estamos numa caixa, uma caixa em movimento. Eles o querem morto ou em sua mentira. Um homem só pode fazer uma coisa: encontrar algo que é dele, construir uma ilha para si. Se eu nunca O encontrar nesta vida, quero sentir a ausência, um vislumbre de Seus olhos e minha vida será Sua.”
Um soldado “filosofa” sobre a morte: “Lembro-me da morte de minha mãe. Ela estava toda encolhida e pálida. Perguntei-lhe se estava com medo. Ela só balançou a cabeça. Tive medo de tocar a morte que vi nela. Não vi nada de bonito no retorno dela para Deus. Já ouvi sobre a imortalidade mas ainda não a vi.”
Vi e não vi, disse o soldado. A morte é invisível, tanto quanto a imortalidade, mas a morte empalidece, nos faz encolher, tremer de pavor, nosso corpo reage antes que ela venha completamente – a morte é visível, a imortalidade é uma promessa invisível. Daí porque Mallick mostra as faces amedrontadas dos soldados da Cia “C”, que chegam a se contorcer de dor, de sofrimento, de angústia, pois sabem que não lutarão contra muitos inimigos, lutarão contra apenas uma inimiga eterna: a própria morte. Não por acaso Rudolf Otto, cientista da religião, escreve em seu livro, “O Sagrado”, que a morte é uma das bases mais poderosas que fez com que o homem “inventasse” a religião, “inventasse” a sua relação com o sagrado.
Em outro momento o soldado Witt pergunta à uma mãe autócne se as crianças daquele local nunca brigavam. Ela responde: “Às vezes, quando estão brincando (playing)”. Será que a luta, a guerra, a briga nasce do jogo, da brincadeira? Será que guerra é um jogo, uma brincadeira de adultos?
Em seguida Witt pergunta se ela e os outros têm medo dele. Ela responde que sim, pois parece que são do exército. Ou seja, com a sutileza de um mestre Mallick denuncia que soldados, exércitos, têm cheiro de morte.
A pergunta dessa mulher fez-me lembrar do artigo de um biblista, especialista em Antigo Testamento e professor da Universidade Metodista de SP, professor Milton Schwantes. Em resumo, em uma das partes de sua análise sobre o texto do profeta Ezequiel, o trecho que fala sobre o “vale dos ossos secos”, Schwantes afirma que exércitos só podem produzir uma coisa: mais vales de ossos secos.
Apesar da farda, Witt nunca está desanimado, carrega um sorriso de “Gioconda” nos lábios, e entrega-se à morte voluntariamente. Sinal de esperança, Witt se contrapõe ao olhar pessimista dos outros soldados e oficiais. Seus olhos são líricos, conseguem ver poesia nas pequenas coisas que o lugar e a guerra lhes proporcionam. É um paradoxo na pele de um soldado. Isso parece ficar claro quando Witt se depara com o pessimismo do sargento Welsh, que lhe diz: “Nunca será um verdadeiro soldado neste mundo de Deus. Neste mundo, um homem não é nada. Não há outro mundo além deste”. Witt, contrariando Welsh, lhe diz: “Não acho que me odeie. Eu não o odeio.” O diálogo ganha em simbolismo quando Witt diz essas palavras acendendo e apagando palitos de fósforo, um após outro. A única certeza que Welsh e Witt podem ter: um dia se apagarão como os palitos de fósforo. Mas para Witt, antes de isso acontecer, é melhor crer na esperança do que na guerra, essa coisa nascida do ódio.
Numa cena semelhante, mas com sentimento oposto ao demonstrado por Witt, o capitão Staros treme e tem os olhos mortificados diante de uma vela acesa, que ele sabe, logo pode se apagar. Nossa vida é a chama de uma vela, já disse Bachelard.
Ao longo de todo o filme sempre aparece algum pássaro, na maioria das vezes voando. Símbolo da alma, de que nossa vida voa quando a morte surge? Deve ser por essa causa que na penúltima cena do filme duas aves se beijam.
Em algumas cenas de batalha, a câmera não mostra apenas corpos feridos e estendidos pela morte, mas principalmente, seja do lado japonês ou norte-americano, mostra homens em estado de loucura, insanos andando de um lado para o outro, falando palavras desconexas como se estivessem no hospício. Eis o quadro da guerra pintado por Mallick.
A vida escorre pelas nossas mãos, escorrega por entre os dedos. Preciosa, cara, esgotada, ela vai e não volta – Tempus Fugit. Essa parece ser a mensagem quando Witt, em três cenas seguidas, mostra como a vida “escorre”, se perde. Na primeira cena, Witt displicentemente joga água de seu cantil sobre a folha de uma planta, que por ela escorre. Na segunda cena Witt toma banho em uma cachoeira, e agora a água escorre por ele. Na terceira, o soldado deixa a água que colheu de um ribeirinho escorrer por suas mãos. Faz isso várias vezes como se estivesse “brincando” distraído.
A essa altura você deve estar imaginando que eu estou viajando, vendo coisas em cenas aparentemente sem importância. Concordo se estivéssemos analisando um filme como Lagoa Azul, mas num filme de pretensa ação, de guerra, elas dizem muito, falam mais do que mil palavras.
O tenente coronel Gordon Tall (Nick Nolte) chama a atenção do capitão Staros por sua “bondade” e o destitui de seu posto. O tenente coronel diz: “vence o mais forte”. Aí está. É a lógica da natureza selvagem. Será que regredimos a um estado de primitividade, de selvageria, onde ser bom é mau? É isso que a guerra faz?
A guerra inverte a lógica do sentimento humano, torna o homem incapaz de lidar com a morte. Isso aparece quando um soldado diz: “Não importa quanto treinamento tenha, quanto cuidado tome, é questão de sorte não ser morto. Não importa quem seja ou se é durão. Se estiver no lugar errado na hora errada, já era. Olho aquele rapaz morrendo e não sinto nada. Não ligo para mais nada.”
No fim do filme, Mallick tenta dar um berro silencioso de paz: de um capacete de guerra, dentro de um rio, germina uma pequena planta, uma pequena raiz de esperança.

05/2003

A Paixão de Cristo

A Paixão de Cristo(The Passion of the Christ , EUA, 2004)

Gênero: Drama
Tempo de Duração: 126 minutos
Estúdio: Icon Productions / Marquis Films Ltd.Distribuição: 20th Century Fox / Icon Entertainment International
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Mel Gibson e Benedict Fitzgerald
Produção: Brce Davey, Mel Gibson e Stephen McEveety
Música: John Debney
Fotografia: Caleb Deschanel
Figurino: Maurizio Millenotti
Efeitos Especiais: Keith Vanderlaan's Captive Audience Productions
Elenco:James Caviezel (Jesus Cristo)
Maia Morgenstern (Maria)
Monica Bellucci (Maria Madalena)
Hristo Jivkov (João)
Hristo Shopov (Pôncio Pilatus)
Rosalinda Celentano (Satã)
Francesco Cabras (Gesmas)
Claudia Gerini (Esposa de Pilatus)
Sergio Rubini (Dismas)
Danilo Maria Valli (Lázaro)
Matti Sbraglia (Caifás)


Quid est veritas?

Passados os ânimos e a catarse coletiva que o filme de Gibson provocou, especialmente por parte dos que viram nele uma afronta aos judeus, ou aqueles que viram nele um sinal razoável sobre o fim dos tempos e a parousia do Cristo, eu mesmo, já contaminado, não consigo ficar alheio de dar minha opinião sobre as sandices que disseram sobre a película.
Em primeiro lugar, não entendo a razão de se insistir tanto sobre o anti-semitismo do filme. Basta lembrar que o cristianismo sempre manteve uma tradição anti-semita em seu seio, e de certa forma, foi isso que o levou a se diferenciar e sobreviver no primeiro século diante do judaísmo. Essa marca é tão profunda que não há na história século em que o cristianismo não tenha utilizado uma boa pitada da culpabilidade judaica pela morte de Cristo como lente para a leitura da Bíblia. O que Gibson fez nada mais foi do que repetir aquilo que ele e todos nós, hipócritas, aprendemos desde cedo com o nosso passado ocidental.
Tudo isso não significa que o olhar para o outro deva chegar aos patamares do ódio e da guerra, como aconteceu algumas vezes, mas exigir que um filme sobre a narrativa da paixão de Cristo a partir da tradição católica seja neutro, é ignorar a história e o significado de uma obra de arte, principalmente quando se trata de uma ficção. Aliás, o tema da ficção sozinho já traz grandes dificuldades para os críticos. Que o diga Luiz Felipe Pondé, em seu barroco artigo: A teologia de Pôncio Pilatos (“Mais!”, Folha de São Paulo, 28/03/2004). Nele o autor questiona: O que é a verdade? Ou na boca de Pôncio Pilatos: “Veritas? Quid est veritas?” Será que o filme realmente trata de questões históricas ou é apenas uma ficção? Para Pondé, em suas próprias palavras, “o filme não é uma peça histórica, mas uma meditação religiosa acerca da Paixão na era da reprodutibilidade técnica.” Ele ainda acrescenta: “Anti-semitismo no cristianismo é real e perigoso, mas é mais complexo que a idéia de que experimentar esteticamente a Paixão seja um discurso que força o ódio judeu.” Paranóias à parte, o público relaxou e chorou.
Em segundo lugar, não com menos ignorância, apareceram os profetas apocalípticos de plantão. É incrível como em fim de milênio e início de outro algumas pessoas (inacreditável é a quantidade delas) sentem-se autorizadas a falar sobre os sinais dos tempos. Numa euforia desmedida, ouvi um sem número de sujeitos dizerem que Gibson fez um filme evangelizador que finalmente prepararia a volta de Cristo. Isso não soa muito diferente da tradição anti-semita, pois o mesmo cristianismo que a preservou, também guarda a sua tradição apocalíptica e chafurda, desde séculos idos, sinais nos eventos históricos para a produção de sua escatologia. Possivelmente ainda seja animada pelas interpretações de Agostinho que dominavam os fins do ano 1000, ou pelas de Lutero, que acreditava que Cristo não demoraria mais que 100 anos para retornar. Ou seja, quando esse cristianismo não lê a Bíblia pela história, no caso do anti-semitismo, lê a história pela Bíblia, no caso da escatologia. Pois é, ler também é um ato político.
O que me espantou, no entanto, e que eu jamais imaginaria, é como a ficção de Gibson, com uma história tão manjada como a de Cristo, conseguiu desencadear o mesmo imaginário escatológico de filmes como Matrix, Blade Runner, I.A.-Inteligência Artificial ou Minority Report, todos filmes enquadrados numa utopia (ou distopia) longínqua. É de se pensar: por que tanta agitação em águas que logo se aquietarão? É só mais um filme dentre tantos, que logo será esquecido. Ou melhor, lembrado apenas por ser uma obra de arte. O que já é muito.
Pensando bem, já era de se esperar reações desse tipo, afinal, os artistas e suas obras de arte funcionam como uma espécie de bode expiatório para determinados grupos da sociedade, e acabam, mesmo sem querer, tornando-se catalisadores das ansiedades e neuroses de muita gente. Como bem disse Pichon-Rivière (O processo de criação):
"Esse emergente (objeto estético novo e original) com sua significação e linguagem próprias (...) pode desencadear no público reações hostis voltadas para a destruição do objeto estético (obra de arte), ou para a destruição simbólica do artista por meio de uma crítica destrutiva na qual, empregando uma linguagem especializada, o crítico denuncia o caráter destrutivo da obra, atribuindo ao artista uma intencionalidade específica. O crítico assume o papel de porta-voz do grupo social. Ou seja, o artista, como toda pessoa de nossa época, tem de abordar os problemas que se colocam para qualquer um de seus semelhantes, mas com a diferença de que ele se antecipa e, como ser antecipado, são lhe atribuídas características de um 'agente de mudanças', situação que favorece o deslocamento para ele de todos os ressentimentos, fracassos, medos, sentimentos de solidão e incerteza dos demais, como se fosse o porta-voz de tudo o que está subjacente e ainda não emergiu."

A veritas de Gibson

Para além da simpatia e da antipatia que Gibson provocou, carregando a pecha de bode expiatório, qual será a verdade que motivou o diretor a filmar a narrativa do Cristo? O que levou um ator acostumado às grandes produções da pancadaria iluminar a tela com um personagem que não ousa revidar? Lançado ao estrelato pelo heroísmo violento (Mad Max) e, no auge da carreira, laureado com vários Oscar pelo mesmo tema (Coração Valente), o que teria impulsionado Mel Gibson a filmar um herói que vence sem dar um soco sequer?
Alguns dizem que a razão foi uma súbita conversão do ator que, envolvido com as drogas e a fama, resolveu dar um jeito na vida. Outros afirmam que ele queria mostrar o seu lado religioso como católico romano fervoroso e ultra-ortodoxo. Mas um punhado de gente jura que o que ele queria mesmo era enganar o incauto telespectador evangélico com artimanhas satânicas que sobrepunham a figura de Maria à de Jesus.
Desconfio de todas essas afirmações. São pautadas por uma boa dose de romantismo e outra de misticismo. Na realidade, penso que a “veritas”, isto é, a verdade de Gibson, além daquela comercial, é claro, tenha nascido de duas intuições. A primeira foi para confirmar o que há muito tempo sabem os assistentes de TV e cinema: um herói, por mais que apanhe, sempre vence no final. A segunda foi para confirmar o que Gibson descobriu como diretor: o “medo” provocado por uma experiência com o sagrado é o meio mais eficiente para converter alguém a algum credo religioso.
O mito do herói não precisa de pistas, a cultura ocidental está imersa nele e poucas narrativas o expressam tão bem quanto a que funda o cristianismo. Cristo é um herói como qualquer outro no que se refere à sua trajetória: nasce pobre e injustiçado, aprende a usar seus poderes, desenvolve esses poderes para lutar contra a injustiça e, quando pensamos que ele irá vencer, é preso, torturado e morto. Mas qual não é a melhor parte, o recheio, senão que o herói retorna e, vencendo a injustiça, restaura todas as coisas? Não será isso que fez o sucesso nas bilheterias de filmes como as trilogias Matrix e Senhor dos Anéis? Não é de hoje que a indústria cinematográfica aprendeu a fazer uso da apocatástasis (a restauração de tudo no final da trajetória do herói), isso já vem de muito tempo.
Independente do cinema, o mito do herói que a história do Cristo apresenta é o mito mais impregnado em nosso imaginário, crente ou não. Funciona mais ou menos como afirmou Karl Jung (Memórias, sonhos, reflexões):
"No Anion (1951) retomei o problema do Cristo. Para mim não se tratava mais do problema dos seus paralelos históricos, mas de um confronto de sua figura com a psicologia. Nessa obra não considerei o Cristo como uma figura livre de todos os seus aspectos externos; procurei, pelo contrário, mostrar o desenvolvimento através dos séculos do conteúdo religioso que Ele representa. Eis o que queria expor, acrescentando o estudo de todas as interpretações importantes que, com o correr do tempo, foram se acumulando a seu respeito. Durante esse trabalho surgiu também o problema da figura histórica do homem Jesus. Esta questão é cheia de significado, pois a mentalidade coletiva de sua época – arquétipo que então se formara, a imagem do 'Anthropos' – precipitou-se sobre ele, quando ele não era mais do que um profeta judeu quase desconhecido. A antiga idéia do 'Anthropos', cujas raízes se encontram parte na tradição judaica, e parte no mito egípcio de Horus, se apoderara dos homens no começo da era cristã, pois correspondia ao espírito do tempo. Tratava-se do 'Filho do Homem', do próprio Filho de Deus, que se opunha ao divus Augustus, soberano deste mundo. Esta noção transformou o problema judaico originalmente do Messias num problema universal."
Olhando para o filme, apenas a imagem em que Jesus levanta-se do túmulo e sai é apocatastasica, mas de um poder aliviador sem igual. Mesmo mostrando parcialmente o seu corpo nu, porque está escondido pelo superclose de sua mão transpassada, a imagem acarreta no espectador o golpe de misericórdia.
Porém, é na segunda intuição da “veritas” de Gibson que encontramos o “pulo do gato”. Mais do que um acesso de crise existencial, ou uma conversão de supetão, o ator/diretor mostrou ser um ótimo aprendiz de roteirista com um outro diretor que parece ter influenciado o seu processo de criação. De acordo com as revistas especializadas sobre cinema na época de lançamento do filme no Brasil, Mel Gibson teria dito que o seu antigo desejo de filmar a história de Jesus Cristo foi reavivado quando fez o papel de um padre que perde a fé e a recupera no filme Sinais de M. Night Shyamalan.
Retomando o filme de Shyamalan, pode-se perceber que as sementes que Gibson planta em seu filme vieram da manipulação que o diretor indiano faz do sentimento de medo para gerar fé e esperança. Estratégia que aparecem não só em Sinais, mas também em Sexto Sentido e Corpo Fechado. É óbvio que não se trata do medo de coisas reais e objetivas, mas o medo de algo inexplicável e paradoxal. Não é o medo comum e natural, mas aquilo que Rudolf Otto chamou de “numinoso”, elemento primordial e instintivo do sagrado. A palavra vem do latim “numem”, que basicamente quer dizer “aceno”, isto é, um sinal que ativa uma experiência instintiva diante de uma presença inexplicável. Ora, e o cinema não causa semelhante sensação? No caso de Gibson, o medo é provocado por um Cristo que, apanhando até não poder mais, conduz o cinéfilo à não abandonar (ou se converter) à fé em Deus. Fazendo acreditar que Cristo realmente está sofrendo, o diretor abandona o assistente à sua “experiência numinosa”, à sua inexplicável sensação de que “deve” alguma coisa para Deus.
José Arthur Giannotti mata essa charada em seu artigo sobre o filme, "Purificação pelo sangue" (“Mais!”, Folha de São Paulo, 16/05/2004). Ele diz: “Como transpassar essa violência banalizada para ressuscitar o sentido religioso do sacrifício? Obviamente numa sociedade de massa e de consumo, o sacrifício tende a se dissipar numa espécie de deglutição do outro, que reaparece simplesmente como outro a ser de novo devorado, num processo em que a violência imaginada sem limites torna aparentemente irrelevante a violência real.” Em outras palavras, a violência contra o Cristo, imaginário eterno carimbado na cultura ocidental, no fundo, reflete a própria violência uns contra os outros. Para resolver o impasse, toma-se uma medida muito simples: ao machucar o outro se expia a culpa machucando a figura do Cristo, em vez de temer as próprias culpas, teme-se o Cristo desfigurado, pois ele é só uma imagem e não a realidade. Sobre a imagem é possível lançar quantas mortes se quiser; a figura do Cristo aceita a desfiguração que se imaginar. O telespectador sai da sala sentindo-se culpado, mas esperançoso de que mudando o mundo interior, muda-se automaticamente o mundo exterior. Mas, em lugar de resolver o mundo real por meio de ações concretas, sejam elas políticas ou sociais, utiliza-se o auto-engano, a imitatio do cinema; eis o segredo de Hollywood.

Hermenêutica quietista

Aparentemente, num primeiro golpe de vista, temos a impressão que Gibson, ou seus assessores “acadêmicos”, deram preferência à moldura redacional do evangelho de Lucas, pois é nele que os romanos são “desculpados” e os judeus são “culpados” pela morte de Cristo. Aparentemente, porque na verdade o filme em nenhum momento fecha o tema. Pistas podem ser coletadas quando entre os acusadores de Jesus no Sinédrio aparecem alguns “justiceiros” tentando convencer a laia religiosa de Israel a não condenar o inocente, ou quando Cláudia, em sua janela e em seus pesadelos, tenta convencer o marido Pilatos a não atentar contra o judeu, ou ainda quando os acusadores não estão entre os principais religiosos, ou entre os verdugos romanos, mas entre o povo ensandecido por sangue e morte.
Em todo caso, sejamos realistas, em vez de se discutir apenas quem matou Jesus, por que também não se discute se o que chegou até nós sobre o Cristo é fato ou não? Já que nós, modernos herdeiros da historiografia moderna, e por isso mesmo tão preocupados com os fatos e eventos como eles realmente aconteceram, por que não nos perguntamos como esses fatos e eventos foram transmitidos até a nossa geração? Sem pieguice, a resposta é a mesma para Gibson e para os crentes: porque o cristianismo receia descobrir que não foi nada disso o que ocorreu, e se isso for verdade, culpar judeus, romanos ou qualquer suspeito por pecados, deixa de ter sentido. O crente não suporta pensar que possa existir um outro lado da moeda, existindo ele ou não. Para ele não interessa a justiça, o que interessa é a ortodoxia, não interessa a ação transformadora, importa olhar de longe, mais ou menos como Cláudia em sua janela, olhando o mundo acontecer, mas preferindo ficar longe dele. Admite-se olhar pela janela do cinema sem no entanto envolver-se com o que se vê nela, pois nisso há o perigo do compromisso. É a velha hermenêutica quietista funcionando: você fica do lado de cá quieto interpretando quem matou Jesus e o Mel Gibson fica do lado de lá, quieto no seu canto, tentando interpretar a história pela solução do quanto menos melhor. Enquanto isso o pau come solto no mundo-cão.

Detalhes

Falando em mundo-cão, uma coisa que Gibson fez bem foi preencher as lacunas da narrativa da paixão com uma moldura teológica que basicamente coloca Cristo como o herói e Satanás como o vilão. Em todo o filme a tensão fica clara, e não pode significar outra coisa senão que Gibson está dando a sua versão para a paixão de Cristo. Para ele Cristo teria morrido para um propósito cósmico que envolve a luta do bem contra o mal. Com isso o diretor dá sentido a uma narrativa fragmentada, algo que não se percebe quando se lê os evangelhos, pois o cristianismo faz uma leitura pressuposta, que tenta dar unidade e encadeamento onde não há. Por isso Gibson corrige o problema da fragmentação sabendo que no cinema isso pode ficar superdimensionado.
A arte católica é revisitada na fotografia do filme. Além dos momentos litúrgicos e teatrais de algumas cenas, outras expõem a imitação e a semelhança de quadros famosos dos grandes pintores do cristianismo. Exemplo temos quando Jesus Cristo desce da cruz no colo de Maria sua mãe. Com um pouco de observação podemos ver nessa imagem a Pietá de Michelangelo. Não chega a ter a beleza do filme de Franco Zefirelli, mas cumpre o seu papel. Aliás, alguns títulos de obras de pintores famosos aparecem nos créditos finais.
Gibson quebra a regra da cinematografia norte-americana de preferir usar o inglês como língua padrão em seus filmes. Ao utilizar o grego koiné, o aramaico e o latim, cria não só um clima de originalidade, mas também desafia o cinema ao mistério das imagens, sem explicações ou racionalizações.
Satanás provoca Jesus duas vezes. Na primeira, logo no começo do filme, Satanás dá à luz a uma serpente, clara alusão à tentação, desejando inibir o ministério de Cristo desde o início. Numa segunda vez, Cristo é tentado quando está vivendo o processo de sofrimento antes de morrer. Satanás traz no colo uma criança, provavelmente seu próprio filho, talvez uma espécie de anticristo, não no sentido escatológico, mas de ser contra o Cristo. Se for isso, a provocação é: “Como pai eu cuido do meu filho, mas o seu pai, onde está?”
Gibson mostra sua ortodoxia católica ao pôr na boca de Maria o credo do sagrado coração de Maria: “Carne de minha carne, coração do meu coração, deixe-me morrer com você meu filho...”
Por fim, a tensão que Pilatos sofre diante do dilema ético de entregar ou não Jesus à morte é genial. Genial porque é o reflexo perfeito dos dilemas que nos acediam o tempo todo, e mais ainda, porque a saída de Pilatos para o dilema é muito semelhante às soluções que nós escolhemos para os nossos dilemas: a Deus o que é de Deus e à vida o que é da vida.
07/2004